A noite em que o tempo se atrasou

As portas já se tinham fechado e o autocarro já estava novamente em andamento quando ele se pôs de pé e começou a caminhar em direcção à porta para sair na paragem que já tinha passado.

Foto
Bruno Lisita

Nem o autocarro ia devagar. Nem o autocarro, nem as pessoas. Lá dentro, apesar de irmos todos sentados, quase posso apostar que íamos com a pressa de fim de dia. Era início de noite, havia certamente casas à espera, havia, lembro-me, headphones nos ouvidos, olhares no telemóvel, na janela. À primeira vista, o cenário pode parecer vagaroso, mas é apenas um intervalo que não deve demorar muito, para se conseguir chegar depressa a algum lado. Sem imprevistos, sem atrasos. Mas naquela noite em que nem o autocarro ia devagar, alguma coisa aconteceu e o tempo atarantou-se, tornou-se rápido e lento ao mesmo tempo. Naquela noite, ficámos quase todos sentados, só uma senhora se levantou.

Então foi assim, e foi tudo ao mesmo tempo. O autocarro ia meio desengonçado por ali fora, aproveitando o desimpedimento da estrada, àquela hora não havia assim tanto trânsito, as ruas estavam já com aquele ar solitário e invernoso, escorregadias de chuva. Dentro do autocarro, tudo calado e com as caras da vida que tem de ser.

Íamos nisto, até que ele se levantou. Ele era um senhor velho, que se mexia muito devagar. Foi tudo ao mesmo tempo: as coisas que aconteceram depressa aconteceram ao mesmo tempo do que as coisas que aconteceram devagar. Se calhar, é sempre assim. Alguém carregou no stop, a luz vermelha ligou-se, o autocarro parou bruscamente, as portas abriram-se, algumas pessoas saíram e, enquanto tudo isto acontecia, o senhor continuava a levantar-se, agarrando-se ao banco e agarrando o carrinho de compras que trazia pela mão.

As portas já se tinham fechado e o autocarro já estava novamente em andamento quando ele se pôs de pé e começou a caminhar em direcção à porta para sair na paragem que já tinha passado. Ele estava no presente, a paragem no passado e nós já estávamos no futuro. Lembro-me de que sorria, enquanto continuava a caminhar para a porta do autocarro, indiferente a que já estivesse fechada.

Foi tudo muito rápido, embora os movimentos do senhor fossem arrastados. Se me pareceu que foi tudo em segundos ou em minutos, também me pareceu que foi uma eternidade ver o senhor a caminhar para a porta fechada do autocarro, enquanto nós, embasbacados, nem nos mexíamos. Até que uma senhora gritou para o motorista:

– Espere! Pare! Está aqui um senhor que ainda quer sair. Quer sair aqui, não quer?

Creio que o senhor não chegou a responder. Continuava a caminhar até à porta, agora com o autocarro parado, continuava a sorrir, nós continuávamos sentados, a senhora que gritou “pare” levantou-se e ajudou-o com o carrinho de compras.

Até hoje não sei como não nos levantámos todos ao mesmo tempo – até hoje não sei e já passou algum tempo. Podia justificar-me com um “foi tudo tão rápido, nem tive tempo de reagir”. Mas na verdade talvez tenha sido ao contrário. Foi tudo tão lento que só aquela senhora teve a disponibilidade, que é como quem diz o tempo, para reagir. Felizmente foi a tempo. O senhor saiu na paragem certa e nós só chegamos uns minutos mais tarde a casa. Nessa noite, fiquei com a certeza de que isto do tempo nos anda a pregar partidas, mas num mundo tão apressado, só alguns dão por ela. E conseguem reagir rapidamente.

Sugerir correcção
Comentar