Caçar coelhos com paus

Se existiu algo que a última década provou foi que imaginar que a tecnologia só por si iria resolver os impasses do nosso tempo resultou num equívoco. Todos os saberes são necessários e não apenas os que julgamos ter mais saída no mercado.

O que é que está a dar hoje em dia? Tecnocracia, positivismo, competição, calculismo e fé irracional na tecnologia. É por isso estranho ver tantos a evocar a integridade, humanidade, generosidade, o profundo desejo de mudar o mundo, tudo coisas em desuso, em contracorrente, a partir da vida e obra de José Mário Branco. É como se a sua morte tivesse tido o efeito de nos devolver, como um espelho, o ambiente de condescendência, cinismo e paternalismo em que estamos imersos, porque o que se relembrou através dele é a antítese radical do que temos hoje.

Os exemplos abundam. Quis o acaso que no dia da sua morte visse na Internet o discurso do presidente do Instituto Superior Técnico, Arlindo Oliveira, na abertura do ano académico da Universidade de Lisboa, que remete as ciências sociais e as humanidades para o canto da projecção dos “valores humanistas”, para enaltecer cientistas e engenheiros, esses sim, capazes de responder aos problemas concretos da sociedade.

Sem eles, ainda andaríamos “a caçar coelhos com paus e a tentar arranjar comida para o jantar”, disse às tantas. De seguida, vaticinou que a solução para uma série de dilemas de hoje (do aquecimento global à “estupidificação causada pelas redes sociais”, do colapso das democracias ao sucesso dos populismos) é, atenção, sustenham a respiração, “mais e melhor tecnologia.”

É verdade que vivemos num tempo em que, em muitos contextos, predomina uma concepção instrumental e parcelar do conhecimento, mas nem toda a gente, na academia ou fora dela, se reverá em entendimentos que parecem querer opor saberes, como se a acção, o fazer, o pensar, o reflectir, as ideias e o sentido crítico não tivessem de se articular de forma integrada ou complementar, para a superação de desafios.

Por outro lado, se existiu algo que a última década provou foi que imaginar que a tecnologia só por si iria resolver os impasses do nosso tempo resultou num equívoco.

Ninguém quer voltar às cavernas. E também não se trata de demonizar a inteligência artificial ou os robôs. A tecnologia é proveitosa, se existirem também políticas válidas, transmissão profícua de conhecimento, estruturas socioeconómicas capazes de promover a justiça social e massa crítica apta a interrogar modelos de sociedade, assegurando novas formas de compromisso com a nossa existência. De contrário, podemos caçar coelhos com robôs em vez de paus, mas nada de essencial terá mudado.

Todos os saberes são necessários e não apenas os que julgamos ter mais saída no mercado. Alguns podem ajudar a prever conflitos e outros, se edificados em conjunto, a superá-los.

Estranho mundo este, em que aspiramos ir a Marte e tudo nos parece possível com a engenharia, a ciência ou a tecnologia, mas quando alguém se atreve, por exemplo, a falar na reforma da Segurança Social, em alternativas ao neoliberalismo ou em procurar outras formas de satisfação para lá do consumo, com a consciência de que onde há pessoas haverá sempre tensões, mas também a possibilidade da justiça e equidade, é acusado de desejar o impossível ou de ser um inquieto sonhador.

Como José Mário Branco, que tanto enaltecemos por estes dias, foi visto durante quase toda a vida.

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