Medalhas do lado avesso

À semelhança da maioria da civilização moderna, tenho andado a viver com um auxiliar de vida, uma espécie de aparelho “mini-som” na orelha. Com acesso constante a este grande irmão — Jorge, chamemos-lhe assim —, cujo incansável cérebro nunca se cansa de pensar por mim, subitamente sei sempre o número de passos, estimativas de minutos e melhores formas de fugir ao trânsito

Foto
henry perks/Unsplash

A minha avó sempre carregou, do lado esquerdo do avesso da roupa interior, um alfinete de ama cheio de pequenas medalhas. Não são bonitas nem feias. Leva-as num sítio em que só mediantes alguns movimentos se lembra de que lá estão. São suas e para si. Para mais ninguém.

Em pequena, achava graça à ideia, mas nunca senti grande apego por prata e “achincalhanços” de bijuteria vária tendem a enervar-me, por isso não chegaria a dar-lhes tempo de me proteger. Recentemente veio-me este amuleto à ideia quando me lembrei de um útil DIY (Do it yourself​, ou “Faz tu mesmo”, numa tradução livre), um termo tão contemporaneamente irritante, que se aplica a esta ideia de pequeno bouquet personalizado.

Eu tenho olhos castanhos e unhas com espessura de papel barato. Tenho também um interessantíssimo instinto para palpites de rotas no que respeita a virar à direita ou à esquerda, sair na primeira ou na segunda saída, e uma inexplicável convicção de que já decorei o caminho, cocktail que me oferece o estatuto de pessoa perdida com bastante recorrência.

Só que, à semelhança da maioria da civilização moderna, tenho andado a viver com um auxiliar de vida, uma espécie de aparelho “mini-som” na orelha. Com acesso constante a este grande irmão — Jorge, chamemos-lhe assim —, cujo incansável cérebro nunca se cansa de pensar por mim, subitamente sei sempre o número de passos, estimativas de minutos e melhores formas de fugir ao trânsito.

Vive-se bem assim. Cobri de gel as unhas de papel para as fazer parar de partir e pus lentes de contacto azuis todos os dias, certa de que já notava uns reflexos nas íris originais. Antes de sair de casa, todos os dias, apalpo os bolsos para garantir que trago o Jorge comigo, não vá o mundo acabar e eu precisar de chegar ao único pedaço de terra que resta.

É quando vivo uma situação em que a pilha do Jorge se acaba que me apercebo de que percorro pacientemente as distâncias dobradas que esta minha (in)capacidade de orientação me oferece. Sou confrontada com a sorte de chegar aos sítios por mero acaso, acompanhada da surpresa de cantos iluminados a LED a dizer Back to the future (e que dão óptimas fotografias). É com agradável surpresa que me recordo que nem tudo é mau quando se anda por ruas novas (aliás, para além de atrasos regulares, pouca coisa é má).

O que me deixou com vontade de responder à pergunta que me faço a mim própria: será que a versão de mim que tem unhas bonitas, olhos claros e chega aos sítios cinco minutos antes corresponde a uma versão 2.0. do original? Dou de barato a resposta: sim, corresponde.

Mas quando a coisa aperta — que é como quem diz, salta o gel, perdemos a lente e ficamos sem internet —, a versão 1.0. de nós próprios está tão acomodada a deixar tais capacidades descansadas (eu gosto de imaginar um sofá com chaise longue, ninguém se despede facilmente desses) que demora algum tempo a conseguir arrancá-las da preguiça. Chegando por fim, meio atordoadas com a luz do dia depois de tanto escuro, vêm destreinadas e pouco dispostas a trabalhar. Até a simples distinção de esquerda e direita se troca, e podia jurar que já passei nesta mercearia, mas não tinha maçãs na rua em vez de abacate (a bom preço, por sinal)? 

Passamos a operar na versão 0.9. Perdemos totalidade.

Pior, esfrega-se-me na cara a sabedoria popular: miséria adora companhia. Para além de se terem acomodado ao desemprego, as ditas cujas preguiçosas ainda carregaram consigo um conjunto de outros traços com os quais até simpatizávamos.

Os pequenos triunfos diários que encorajam, muito momentaneamente, a confiar mais em capacidades como improviso (ou na sorte, ou nas probabilidades, dependendo da visão pessoal de cada qual) perdem-se. É trocar a felicidade daquele momento em que um autocarro aleatório nos deixa justamente à porta do restaurante, com o bónus de nos deixar capaz de repetir o caminho, pelo Uber que nos leva lá sem sequer nos ensinar o nome da rua.

Então, rufos para o DIY anunciado: vou carregar cada um desses meus triunfos naquele alfinete de ama, tal bouquet. Sendo de natureza metafórica, o meu tem a vantagem de ser mais silencioso do que as medalhinhas da minha avó. Ao contrário da solidez da prata, no entanto, o meu bouquet requer que eu obrigue todas as já descritas características a exercerem o seu tempo de antena. Só os malucos é que carregam alfinetes de ama a prender nada.

Recheado como se pode, vou trazer o meu bouquet à esquerda, como se deve. E deixar que aí me pese nas alturas em que as ruas teimam em não me levar de volta aos abacates a bom preço. Beliscões de sucessos nos quais me apoiar quando estiver a ponto de chorar pelo regresso do Jorge. É que, às vezes, preciso de ajuda para me lembrar que, devido aos treinos regulares, a minha capacidade de desenrascanço tende a ser proporcional à minha desorientação.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários