Os níveis de smartificação e a coesão territorial

Estratégias de transformação digital, níveis de smartificação e processos de governação multiníveis são três momentos fundamentais para a política de coesão territorial a merecer cuidada e rigorosa atenção.

A estrutura orgânica do XXII governo constitucional integra um novo ministério, o Ministério da Coesão Territorial, e duas Secretarias de Estado, a do Desenvolvimento Regional e a da Valorização do Interior. Façamos, então, uma breve reflexão em redor da temática da coesão territorial, desta vez pelo lado da inteligência territorial e os seus níveis de smartificação do território.

Quatro estratégias de transformação digital e inteligência coletiva

A inteligência coletiva territorial depende, obviamente, da estratégia de transformação digital e do ritmo e coerência da sua implementação no terreno. Isto quer dizer que não é indiferente a forma como uma cidade se torna inteligente e, nessa medida, o modo como o processo de smartificação acontece, ou, ainda, o modo como a transformação digital da cidade se repercute sobre a transformação digital do território envolvente. Não seria nada sensato ter cidades inteligentes e prósperas e à sua volta territórios não-inteligentes e pobres. Afinal, cidades inteligentes que não dão provas de inteligência não são cidades inteligentes.

Os territórios inteligentes são uma espécie de novo emblema das políticas do território. Em contraponto ao negócio digital, que irá inundar a sociedade portuguesa em todas as suas áreas de atividade, a digitalização de um território precisa de um centro dotado de um mínimo de racionalidade global, um ator-rede, que evite a cacofonia e o ruído de fundo. Para pôr ordem no problema, uma estratégia digital pode prosseguir cinco tipos de inteligência coletiva territorial que enquadram e delimitam tudo o resto:

- Uma “simples otimização de recursos” na provisão de serviços públicos convencionais, uma versão, digamos, performativa,

- Uma “provisão de bens comuns intermunicipais” em resultado de alguma forma de federalismo autárquico ou rede urbana, uma versão, digamos, cooperativa,

- O lançamento de “plataformas made in” para desenvolver a sociedade multilocal, uma versão, digamos, colaborativa,

- A criação de um “ambiente inteligente de educação e ensino”, virada para o utente/utilizador e a coprodução de serviços comuns, uma versão, digamos, formativa,

- A criação de um “ecossistema digital integrado” virado para uma estratégia de desenvolvimento territorial, uma versão, digamos, sistémica, como instrumento de formação de novas economias de rede e aglomeração.

Como se observa, fica claro que vai uma longa distância entre a simples provisão inteligente de serviços públicos de uma smart city e a criação de um ecossistema digital integrado no quadro de uma estratégia de desenvolvimento territorial mais dilatada no tempo.

Cinco níveis de smartificação territorial

As estratégias de transformação digital que vimos anteriormente são prosseguidas a vários níveis de administração e gestão do território. A este propósito, podemos falar de dois tipos de território: os territórios-zona (T-Z), que são de geometria fixa, geralmente municipal e intermunicipal, e os territórios-rede (T-R) de geometria variável que são, justamente, incentivados e promovidos pela transformação digital sob a forma de comunidades inteligentes geralmente construídas por cima das fronteiras municipais. Vejamos, então, os cinco níveis de smartificação do território.

  1. O 1º nível de smartificação: as cidades inteligentes (smart cities)

No que diz respeito às smart cities já hoje existe um pacote de serviços muito variado que inclui a infraestruturação digital, as redes integradas de energia e a eficiência energética, a gestão de bairros inteligentes, as conexões e a mobilidade urbana, a administração em linha, as plataformas urbanas e a sua interoperabilidade, o ambiente e os indicadores de qualidade de vida, a recolha e tratamento de dados e, finalmente, a segurança dos cidadãos e dos sistemas em ação na smart city. A iniciativa “Smart cities tour 2019” da ANMP é um bom exemplo desta abordagem urbana de inteligência territorial baseada, essencialmente, numa abordagem performativa.

  1. O 2º nível de smartificação territorial: as comunidades intermunicipais (CIM),

O primeiro exemplo de uma comunidade inteligente comprometida ou smartificada com o seu território envolvente diz respeito às atuais comunidades intermunicipais (CIM). O conceito de “CIM inteligente”, na minha aceção, contempla, por um lado, a definição de um “governo dos comuns” e, por outro, a conceção e construção de um “centro partilhado de recursos digitais”. De resto, não antevejo a criação de territórios inteligentes sem um passo em frente dos municípios em direção ao federalismo autárquico. Nesse sentido, a “CIM inteligente” seria o ator-rede de uma estrutura de missão que, para tal, criaria uma espécie de “ordem multilocal” muito útil a uma comunidade de autogoverno colaborativo.

  1. O 3º nível de smartificação: as regiões administrativas NUTS II

Os municípios e as comunidades intermunicipais já estão no terreno e a transformação digital destes dois níveis de administração será fundamental para o seu desempenho numa lógica de prestação de serviços comuns, do tipo loja do cidadão. Todavia, no plano da criação de riqueza e das reformas estruturais para o interior a retaguarda municipal e intermunicipal já não é suficiente. E aqui encontramo-nos numa encruzilhada porque não existe consenso no país acerca da formação das regiões administrativas e de outros territórios como as cidades-rede (PÚBLICO, 2018.03.07).

O objetivo central seria eleger o nível NUTS II como o lugar central de uma nova racionalidade e governabilidade territoriais, em particular, para desenhar uma estratégia de governação e articulação multiníveis: de um lado, os municípios e as comunidades intermunicipais (CIM), como estruturas de missão, do outro, os planos de ação regional, o programa nacional de reformas e os programas europeus de coesão. O nível NUTS II é aquele que, em minha opinião, reúne maior centralidade e racionalidade para modernizar as várias administrações do território e levar a bom termo as missões de arbitragem e articulação e, também, uma smartificação do território de 3º nível.

  1. O 4º nível de smartificação: as euro-cidades e euro-regiões

No âmbito europeu a smartificação pode ter lugar no quadro da cooperação transfronteiriça e transnacional com as euro-cidades e as euro-regiões, genericamente designados de agrupamentos europeus de cooperação territorial (AECT). No caso português a fachada ibérica é um lugar central fundamental para conceber e experimentar as políticas de valorização do interior e de coesão territorial, sob a forma de euro-cidades e euro-regiões, e empreendidas por intermédio de uma estratégia especifica de transformação digital adequada a estes territórios.

  1. O 5º nível de smartificação: os territórios-rede

Todos os territórios referidos nos níveis anteriores são territórios-zona porque são concebidos a partir de territórios administrativos já existentes, geralmente de âmbito municipal. Ora, justamente, as diferentes estratégias de transformação digital abrem uma janela de oportunidade para territórios de geometria variável, digamos, para bens e serviços comuns produzidos por comunidades inteligentes e colaborativas concebidas e construídas de baixo para cima. E nesta aceção os exemplos são ilimitados porque, em princípio, todos os membros de cooperativas, associações, fundações, coletividades, condomínios, geminações, comunidades, podem constituir plataformas colaborativas e uma inteligência coletiva territorial, ou seja, um governo dos comuns peer to peer (P2P) para todos com base num centro partilhado de recursos digitais.

A governação multiníveis e a coesão territorial

Portugal está integrado no espaço-território da União Europeia. Neste âmbito pratica-se a chamada “governação multiníveis”: Bruxelas e Lisboa definem a polity e a policy dos fundos europeus e da política de coesão territorial, os municípios, as associações empresariais e outros beneficiários estabelecem e praticam a politics da coesão territorial. Esta divisão do trabalho político-administrativo é fundamental num estado de estrutura unitária como é o nosso. Neste tipo de Estado-administração existe um risco alto, qual seja, o de que o governo central use a administração desconcentrada regional como instrumento direto de ação política e gestão da procura agregada macroeconómica, como uma espécie de guarda avançada das suas políticas públicas de regulação, racionalização e ajustamento económico-financeiro, tudo isto em face do elevado volume de dívida pública existente. Por outro lado, existe, também, o risco elevado de a administração local usar as associações de municípios e, agora, as comunidades intermunicipais como guardas avançados e projeção da sua legitimidade e especificidade local, intermunicipal e sub-regional.

Assim, Bruxelas e Lisboa, a capital regional NUTS II e a capital intermunicipal da CIM NUTS III, o Município e as Uniões de Freguesias, todos estes centros de poder participam na governação multiníveis em instâncias de consulta, concertação, regulação e deliberação. No sentido de pôr alguma ordem nesta eventual cacofonia territorial, uma hipótese possível é transformar as atuais CCDR no lugar central de uma verdadeira política de concertação territorial, de acordo com três formulações possíveis. A primeira, sob a forma de “regionalização minimalista”, visa reforçar as atribuições e competências das atuais CCDR e, bem assim, os seus poderes coordenativos de autoridade regional, mas sempre, e ainda, numa lógica de administração desconcentrada do Estado-administração. A segunda, sob a forma de um “executivo regional”, visa acrescer a legitimidade política da CCDR (com a eleição eventual do seu presidente), materializar uma nova arquitetura para os serviços regionais e ter como principais interlocutores sub-regionais as estruturas de missão das CIM/NUTS III. Finalmente, uma terceira hipótese seria assentar a gestão da política de coesão territorial nas CIM, reforçando as suas atribuições, competências e meios, e atribuir às CCDR funções mais desmaterializadas de regulação e fiscalização da política de coesão territorial.

Em qualquer destes casos, um conselho de concertação territorial e alguma inovação na política regional de open data permitiriam, ainda, criar as condições mínimas para lançar algumas plataformas colaborativas de bens e serviços comuns e, assim, criar inteligência coletiva bastante para completar o novo quadro de governação e coesão territoriais.

Notas Finais

Estratégias de transformação digital, níveis de smartificação e processos de governação multiníveis são três momentos fundamentais para a política de coesão territorial a merecer cuidada e rigorosa atenção. O contexto que aí vem também já é conhecido. No próximo período de programação plurianual teremos não apenas menos fundos, devido à saída do Reino Unido, mas, também, alterações fundamentais na política de coesão e reforma dos fundos. A nova comissária portuguesa Elisa Ferreira terá menos fundos de coesão à sua disposição e novos instrumentos para gerir, a saber, um novo instrumento para a transição energética e digital e um novo instrumento para a convergência e a competitividade no espaço da zona euro. Neste contexto, as afetações de fundos serão regidas mais pelas “transições e emergências”, não parecendo existir grande margem de manobra para as reformas estruturais e as estratégias longas de valorização do interior.

Em vez disso, é, porventura, chegado o tempo da transformação digital, da infraestruturação e cobertura digitais, das cidades-região inteligentes e das diferentes estratégias de smartificação dos territórios envolventes. Mas este propósito, expresso desta forma simples, é uma autêntica revolução no Estado-administração de estrutura unitária. Por isso mesmo, esperam-se muitas resistências e contrariedades e isto por várias razões. Em primeiro lugar, implicaria, desde logo, uma alteração substancial na orgânica interna dos municípios no que diz respeito à relação back office versus front office e à estrutura de qualificações do pessoal técnico das autarquias.

Em segundo lugar, seria necessário combater em toda a linha a iliteracia digital em todas as faixas etárias, o que implicaria, igualmente, uma reforma profunda nos programas escolares e na organização do edifício escolar intermunicipal na sua plenitude, por exemplo, através da criação de uma escola tecnológica e digital em cada CIM.

Em terceiro lugar, a digitalização da CIM necessitaria de uma política muito mais substancial de descentralização político-administrativa, pois estariam criadas condições para uma gestão mais eficiente de recursos escassos no plano intermunicipal. No mesmo sentido, a CIM teria de ser um “território-desejado”, uma cidade-rede para o século XXI, muito próxima das populações e colocando à sua disposição uma série de bens e serviços comuns, fixos e ambulatórios, que, de outro modo, não seria possível.

Em quarto lugar, uma “CIM inteligente” teria de cuidar da sua responsabilidade social e ambiental e ser muita inovadora no que diz respeito às relações de trabalho, pois na posse de um banco de dados sobre as várias tipologias do mercado de trabalho, a comunidade inteligente poderia apresentar soluções muito criativas e interessantes de mobilidade geográfica e profissional para aplicar no interior da CIM e em CIM vizinhas.

Deixo um alerta final, pois tudo isto pode estar, afinal, fundado num enorme equívoco. É preciso verificar, a todo o tempo, se por detrás de uma smartificação precipitada não se esconde, afinal, mero “negócio digital e governação algorítmica” onde palavras de ordem como desenvolvimento, modernização, coesão, sustentabilidade, são simples publicidade enganosa travestida de modernismo tecnológico, que, no fundo, visa apenas criar um caldo morno de obediência administrativa e acomodação burocrática.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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