Bolsonaro, um líder político pode ser muitas coisas

Bolsonaro é um teste à democracia brasileira. O genuíno e reiterado desrespeito nutrido por Bolsonaro e os seus correligionários pela democracia é bem conhecido de todos.

Há líderes inspiradores. Mandela inspirou um país a dizer “não” à discriminação racial. Fê-lo com o seu exemplo. Isto não significa que Mandela tenha sido algum dia consensual. Mas a verdade é que o seu exemplo inspirou muitos a seguirem os seus passos. Quando o momento chegou, a maioria seguiu-o na construção de uma África do Sul democrática e multirracial.

Há líderes que resolvem problemas. Merkel, por exemplo, não inspira ninguém. Mas foi ela quem ajudou a resolver alguns dos problemas com que a Alemanha e a Europa se defrontaram na última década e meia. Veja-se, por exemplo, o caso da reunificação alemã. Por mais limitada que continue a ser, a verdade é que ficou muito a dever a uma chanceler oriunda da Alemanha de Leste. Claro que o seu pragmatismo, quando não tacticismo, também criou outros tantos problemas para os quais os seus sucessores terão de dar resposta, quer domesticamente, quer a nível europeu.

Há outros líderes que passam despercebidos. Apesar dos muitos anos de vida política ativa, muitos líderes há que não deixam marca relevante. A manutenção do status quo tem destas coisas. Apesar de poder garantir reeleições, a realidade é que a governação desses anos fica para a história como períodos de transição sem grande significado, uma oportunidade perdida (de reforma, por exemplo), ou, pior ainda, de agravamento de problemas estruturais por não terem sido atendidos em devido tempo e com a determinação necessária.

E há líderes que são testes. É o caso do Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro. Bolsonaro é um teste a uma série de coisas no Brasil e fora dele.

Antes de mais, Bolsonaro é um teste à democracia brasileira. O genuíno e reiterado desrespeito nutrido por Bolsonaro e os seus correligionários pela democracia é bem conhecido de todos. Durante décadas, Bolsonaro viveu nas franjas da política brasileira como uma das poucas vozes a defender abertamente o legado da ditadura militar.

Em 2018, porém, Bolsonaro é eleito Presidente do Brasil. De um momento para o outro, o discurso radical e extremista de Bolsonaro torna-se o discurso do primeiro representante da democracia brasileira. Bolsonaro é o principal teste à democracia brasileira desde o fim da ditadura, disso ninguém tem dúvidas; se esta vai sobreviver incólume, ou se as sequelas vão ser profundas e duradouras, só o tempo o dirá.

Bolsonaro é um teste à tentação autoritária. Há segmentos da sociedade brasileira, como em tantas outras que passaram por experiências autoritárias, que desejam o regresso da ditadura. A tentação autoritária é tanto maior quanto a transição para a democracia traga consigo uma inversão, ainda que parcial, das elites dominantes. A isto acresce uma mobilidade social ascendente que, vinda de baixo, importuna quem (por enquanto, ainda) está por cima. Mas estes segmentos mais reacionários não são, do ponto de vista demográfico e eleitoral, suficientes para sustentar um projeto político a longo-prazo.

É necessário atrair uma franja mais numerosa e ideologicamente mais moderada da população. Este é o verdadeiro teste à tentação de se trocar a democracia por uma solução autoritária em nome da ordem e da segurança. As próximas presidenciais no Brasil encarregar-se-ão de dar resposta a este teste.

Brasil desigual
Bolsonaro é um teste à sociedade brasileira. O Brasil tem uma estrutura social dividida, espartilhada numa miríade de classes e grupos que pouco ou nada comunicam entre si. Apesar o mito conveniente do luso-tropicalismo, as linhas de fratura vêm de trás. A tremenda desigualdade social e económica é, muitas vezes, exacerbada por clivagens raciais. O Brasil é uma sociedade profundamente patriarcal, onde a desigualdade de género desagua muitas vezes na violência de género. Numa sociedade tão dividida quanto a brasileira, um líder que se alimenta de ressentimentos e preconceitos representa um teste ao próprio tecido social do país.

Bolsonaro é um teste à ética e à moral dos brasileiros. Uma coisa é conviver com níveis elevadíssimos de segregação residencial, criminalidade organizada e exclusão social, e, ainda assim, continuar a ser capaz de se indignar. Outra coisa, bem diferente, é perder de vez a capacidade de indignação. É perder de vista valores tão básicos e fundamentais como o valor da vida humana. Ou esquecer a importância da justiça social. O patrocínio (senão mesmo envolvimento) em casos de violência por parte de Bolsonaro e o seu círculo de apoiantes mais próximo é um outro teste que os próximos anos irão dar resposta.

Bolsonaro é um teste ao próprio meio-ambiente. A desflorestação da Amazónia tornou-se num símbolo acabado do bolsonarismo. Quantos mais hectares de floresta vão ter de arder até que a própria natureza comece a impor os seus próprios limites à vida humana no Brasil e no resto do mundo? Este é um teste a todos nós. Veja-se o caso do investimento do grupo hoteleiro português Vila Galé numa reserva indígena na Bahia, em boa hora interrompido pela corajosa intervenção da minha colega antropóloga Susana Matos Viegas.

Bolsonaro, como outros líderes, é um teste à comunidade internacional. Caso a situação no Brasil continue a agravar-se, será que as instituições internacionais e a própria União Europeia vão levantar a voz em defesa das instituições democráticas nesse país? Ou será que o princípio da soberania nacional, de braço dado com a realpolitik dos interesses e das oportunidades acrescidas de investimento, vai falar mais alto? A comunidade internacional, defende ou não a democracia quando esta está em perigo?

O Brasil, em todo o caso, é uma democracia notável. Apesar dos longos anos de ditadura militar, o regresso da democracia no final dos anos 80 foi largamente consensual. O processo constituinte mobilizou milhares de brasileiros, que viram no processo de discussão e aprovação da nova Constituição um novo começo para a vida coletiva. As instituições políticas continuam, apesar de tudo, a garantir que a Lei Fundamental é respeitada. Os meios de comunicação social são livres, plurais e capazes de colocar as elites em cheque.

Tudo isto é verdade, mas será que o Brasil vai mesmo conseguir passar no teste Bolsonaro?

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