Guarda-chuva zero

Ficou a sensação de que um movimento inorgânico é o portador do protesto de agentes e militares da PSP e GNR. Convem não torná-lo a sua marca branca.

Da manifestação da tarde desta quinta-feira, em Lisboa, dos sindicatos da polícia e da associação de profissionais da GNR há que retirar conclusões. Com sinal de urgência e inquietude.

Ao fim da tarde desfez-se o segredo de polichinelo, o mais recente tabu da vida política portuguesa, da ligação de André Ventura a sectores das forças de segurança descontentes. Ventura fez o seu primeiro comício a céu aberto em São Bento, com o à vontade de quem falava aos seus. Deu a casa, o largo fronteiro ao Parlamento, e recebeu o seu primeiro banho de multidão.

A estreia em palco de camião embaraçou os convocantes do desfile e põe em causa o movimento ao conferir-lhe uma identidade com o deputado único. Quando o ponto de partida, duas horas antes no Marquês de Pombal, era o de em gritos e cartazes sensibilizar a cidadania para a imensa panóplia de problemas das forças de segurança.

O objectivo era juntar todos, não só os agentes ao som da “polícia unida, jamais será vencida”, mas despertar os cidadãos para factos e condições, abusos e limitações, anacronismos e dependências com que desempenham a sua acção.

Afinal, a palavra “respeito” pintada em letras garrafais nas tarjas e exigida ao poder político, acabou por ser substituída pelo apelido Ventura entoado a compasso de meeting político. Sindicatos e associação têm de meditar no que aconteceu.

Tanto mais que, como convocantes, se dissolveram na facilidade e mestria das palavras de ordem do Movimento Zero. Os gritos de zero, as t-shirts de zero e o zero desenhado pelos dedos com interessada exploração de extrema-direita ou a mais genuína ignorância, confirmaram o que se temia. Que sindicatos e associações são apenas tolerados por um movimento inorgânico, sem líderes aparentes e reconhecíveis, que comunica na irresponsabilidade das redes sociais.

Noutros tempos, dir-se-ia que o movimento representativo, porque submetido ao sufrágio da escolha, ao crivo de um programa e à coerência de uma acção fora companheiro de estrada de outra entidade. Superior, disfarçada e manipuladora. Depois desta quinta-feira, corre o risco de ser encarado como tonto útil.

Quando, finalmente, força o Governo à negociação e ganha corpo na afirmação da sua identidade, aparece o sobressalto de um sequestro por uma força anónima que pode deitar tudo a perder. Anunciar nova manifestação a 21 de Janeiro quando há escassos dias foi avançado pelo Governo um horizonte negocial no final de primeiro trimestre e no fim do primeiro semestre de 2020, só pode ser arma de pressão.

A ser utilizada com cuidado, para evitar mais desencantos, novas frustrações e atiçar mais revoltas. Era municiar os inorgânicos com mais desalento e raiva. E abrir a via de escape para o Governo se desentender da negociação.

Do desfile desta quinta-feira em Lisboa ficou a sensação de que um movimento inorgânico é o guarda-chuva do legítimo protesto dos agentes e militares das forças de segurança. Convém não torná-lo na sua marca branca.

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