Que política económica?

Na prática, um BCE todo-poderoso não é viável, especialmente no ambiente político atual. Está nas mãos dos decisores políticos evitar este cenário. Basta quererem.

Mario Draghi terminou o seu mandato como presidente do Banco Central Europeu (BCE) no final de Outubro. Não foi sem emoção que vimos um dos maiores atores políticos dos nossos tempos sair de cena. Apesar de ser um tecnocrata, tinha uma visão política clara para a zona euro e não teve medo de a perseguir. Muito há para dizer do seu enorme legado, mas isso já foi feito, e bem, neste jornal.

Importa, então, olhar para o futuro e tentar antever como vai evoluir a política monetária europeia. Para tal, ajuda revisitar o passado e perceber o presente.

1. Vivemos na era do não-convencional

Após a crise financeira, muitos bancos centrais adotaram uma política monetária extremamente expansionista. O BCE não foi exceção. Reduziu gradualmente as taxas de juro, trazendo-as para território (bem) negativo, e iniciou um programa de compras líquidas de ativos. Estas políticas resultaram? Sim e não.

Sim, porque aniquilaram as preocupações dos mercados financeiros sobre a viabilidade política do euro; aliviaram o peso da dívida em países sem qualquer margem para ação orçamental; contribuíram para a recuperação do crédito bancário; e dinamizaram os mercados de trabalho e a procura. Estudos indicam que, sem estas medidas não-convencionais, a inflação e o crescimento do PIB na zona euro teriam ficado entre 0,5-1,5 pontos percentuais abaixo do verificado em 2015-18.

Não, porque foram incapazes de gerar pressões inflacionárias sustentáveis. A inflação está hoje muito abaixo dos 2% visados pelo BCE. Deparando-se com um aumento do risco de deflação e uma recuperação económica anémica, o banco precisou de injetar (ainda) mais estímulo monetário. Draghi foi Draghi e anunciou em Setembro um ambicioso pacote de medidas — uma jogada que também visou proteger Christine Lagarde, a nova presidente.

2. O não-convencional gera desconforto

A adoção destas medidas dividiu o conselho do BCE e gerou polémica: antigos e atuais governadores dos bancos centrais da Alemanha, Holanda e Áustria demonstraram a sua insatisfação na praça pública; Sabine Lautenshlager, membro do conselho executivo do BCE, demitiu-se; e os media alemães lançaram uma agressiva campanha de ataque a Mario Draghi.

Em relação a isto, importa reter três notas.

Primeiro, estes episódios de dissidência não devem ser objeto de uma leitura exagerada. Foi, de facto, uma reação sem precedentes, mas, à medida que o BCE avança em território desconhecido, é normal que haja divergências cada vez mais estruturantes. O debate técnico e político é saudável e não tem necessariamente de gerar conclusões tóxicas. Para além disso, não é a primeira grande onda de oposição que o BCE enfrenta (ainda todos nos lembramos quando Jens Weidmann, presidente do Bundesbank, testemunhou em tribunal contra o BCE). Também não será a última.

Segundo, muitos dos argumentos apresentados contra as medidas são válidos. As políticas monetárias do BCE surtiram efeito no passado, mas a sua eficácia é cada vez menos clara. Não só porque o crescimento do crédito parece não reagir a mais liquidez no sistema bancário, mas também porque os efeitos de longo prazo destas medidas são desconhecidos. Contribuem para a baixa rentabilidade dos bancos e diminuem o retorno dos fundos de pensões. Também alimentam empresas zombie e reduzem substancialmente os incentivos para que economias altamente endividadas priorizem a consolidação orçamental (sendo Portugal uma exceção exemplar).

Terceiro, estes ataques têm potencial para diminuir a eficácia das medidas implementadas, uma vez que sinalizam aos mercados que a sua base de apoio é frágil. Em última análise, podem até indicar que o BCE não será capaz de atuar numa crise. Não é preciso explicar a potencial gravidade destas consequências – basta reviver a reação dos mercados à falta de resposta do BCE em 2012.

3. Esta política monetária é sustentável?

Durante os próximos dois anos, atrever-me-ia a dizer que sim. Apesar da controvérsia gerada, há fortes razões para acreditar que nos próximos tempos a taxa de depósito ficará em -0,5% e que o programa de compras líquidas de ativos se manterá.

Infelizmente, a razão principal é a falta de uma política alternativa viável. A política orçamental na zona euro continua morta. Já vimos países como a Holanda a dar passos importantes no estímulo orçamental, mas outros, como a Alemanha, mantêm-se reticentes. Acima de tudo, uma política expansionista coordenada a nível regional é improvável. Apesar de haver alguma vontade política para avançar nesta direção, qualquer iniciativa demorará tempo a materializar-se. Assim, à falta de melhor, a política monetária permanecerá a opção em vigor por defeito.

É também importante relembrar que há uma maioria no conselho do BCE a favor das medidas anunciadas em Setembro. Os dissidentes fizeram barulho, mas estão em minoria – estima-se que apenas oito membros, num total de vinte, se tenham oposto. Além disso, Isabel Schnabel, a nova economista alemã do conselho, é menos crítica do BCE do que a sua precedente, Sabine Lautenshlager. Também Christine Lagarde desempenhará um papel importante: dadas as suas fortes capacidades diplomáticas, está bem posicionada para gerar um consenso mais robusto à volta da atual política monetária, dentro e fora do conselho.

Por fim, enquanto a inflação se mantiver bem abaixo dos visados 2% e a expansão económica europeia permanecer frágil — o que quase todas as instituições preveem para 2020-21 —, o BCE não terá um argumento convincente para adotar uma política mais restritiva. Se o banco terminar o programa de compras líquidas de ativos ou subir as taxas de juro sem uma justificação económica sólida, um certo grau de pânico facilmente voltará aos mercados financeiros. Dado o ambiente de incerteza generalizada em que vivemos, isto pode desencadear um aumento dos custos de financiamento maior do que o desejado, com efeitos nefastos para a economia.

4. Esta política é suficiente para uma retoma económica?

Muito dificilmente. Pelo menos enquanto o mandato do BCE estiver confinado a assegurar estabilidade de preços. Apesar de a política monetária atual estar a suavizar a desaceleração da atividade económica europeia, é improvável que conduza a uma retoma significativa, sustentável e capaz de gerar pressões inflacionárias firmes.

As forças deflacionárias em jogo são demasiado grandes e estruturais para serem combatidas apenas pelo BCE. O défice de investimento público na zona euro e a consequente baixa produtividade requerem uma política orçamental mais assertiva. O baixo nível de inovação e concorrência requerem uma união de mercados de capitais. Um sector bancário mais saudável, com uma alocação de recursos mais eficiente, capaz de ser motor de crescimento, precisa de consolidação, políticas macro-prudenciais mais fortes e regras mais estritas.

Embora tenha desempenhado um papel crucial no pós-crise, a política monetária não deve ser a resposta a todos estes problemas. Em teoria, não há limites à quantidade de estímulo que os bancos centrais podem injetar na economia. Têm o monopólio da criação de dinheiro, por isso só precisam de ser inovadores. No entanto, na prática, um BCE todo-poderoso não é viável, especialmente no ambiente político atual. Isto porque uma política monetária ainda mais ambiciosa e não-convencional poderá ter de passar pela fusão de competências monetárias e orçamentais e forçar o banco a entrar em território soberano. Está nas mãos dos decisores políticos evitar este cenário. Basta quererem.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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