De Manuel Jorge Veloso a José Mário Branco, à luz das coincidências

Há uma geração tão cara à cultura portuguesa que se vai lentamente “apagando”, mas ao mesmo tempo nos vai deixando a sua luz.

Quando nos morreu António Jorge Branco (1937-2011), saudoso jornalista e amigo, recebi de José Mário Branco um telefonema que começava assim: “O meu irmão apagou-se”. E nenhuma outra imagem podia ser tão adequada: porque só se apaga o que tem luz, o que ilumina. Ora tem vindo a avivar-se a evidência, inexorável, de que uma geração tão cara à cultura portuguesa se vai lentamente “apagando” – e temo-lo visto, e sentido, em tantas despedidas. Mas há algo que, no reverso desses “apagamentos”, se impõe como inevitabilidade benigna: uma luz que nos torna mais nítidas as vidas e as obras dos que, deixando-nos, passam a habitar a História.

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Lisboa, 30 de Abril de 1974: atrás de José Mário Branco está, a sorrir, Manuel Jorge Veloso; à esquerda, vêem-se Luís Cília e Adriano Correia de Oliveira RTP

Agora, com escassos dias de diferença, essa luz incidiu sobre Manuel Jorge Veloso (21/5/1937-13/11/2019) e José Mário Branco (25/5/1942-19/11/2019). Unidos pela música, onde cada qual a seu modo deu o melhor que tinha de si, também os uniu a vida, nalgumas circunstâncias. No dia 26 de Novembro de 1971, quando o lisboeta cinema Roma se encheu para apresentar o primeiro LP de José Mário Branco, Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades, e o primeiro EP de Sérgio Godinho, Romance de um Dia na Estrada (a antecipar o álbum Sobreviventes, com edição adiada para 1972), Manuel Jorge Veloso estava entre os que enchiam por completo a sala e onde estavam, também, José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Fernando Tordo, José Jorge Letria, José Duarte e José Nuno Martins. Ora nesse dia, à noite, Cascais acolheu o 1.º Festival de Jazz (com gigantes como Thelonious Monk, Miles Davis, Dexter Gordon, Art Blakey, Ornette Colleman ou Phil Woods). E se José Mário ou Sérgio Godinho não podiam lá ir, porque estavam exilados em Paris, Manuel Jorge Veloso tinha de estar lá: foi um dos primeiros entusiastas da divulgação do jazz em Portugal e, como músico (bateria, saxofone, flauta), foi co-fundador do Quarteto do Hot Clube de Portugal. Aliás, foi como músico que ele integrou, nesse mesmo festival, o quarteto de Dexter Gordon.

Mas Manuel Jorge Veloso esteve também ligado à produção (na RTP e em companhias de discos), e foi nessa qualidade que surgiu no segundo LP de José Mário, Margem de Certa Maneira (1972), editado pela Sassetti, companhia para a qual então trabalhava. A ficha do disco di-lo “produtor delegado”, mas foi mais do que isso; como músico, ouvimo-lo a tocar órgão e nos coros de Por terras de França (com José Mário a cantar e no acordeão) e também nos coros de Eh! Companheiro ou a bater palmas e no metrónomo em Sant’Antoninho. Não só aqui. Também no álbum de estreia de José Jorge Letria, Até Ao Pescoço (1972), gravado em França como os já citados, José Mário (direcção musical) e Manuel Jorge (produção e coros) surgem na ficha.

E a música há-de mantê-los próximos, em várias ocasiões. A música e, por via dela, a vida. No dia 30 de Abril de 1974, logo a seguir à queda da ditadura, quando José Mário Branco chega a Lisboa num avião vindo de Paris (o mesmo avião onde vinham também Álvaro Cunhal, Luís Cília, Cláudio Torres e outros exilados), Manuel Jorge Veloso está entre os que no aeroporto os aguardam. Até que todos cantam, juntos, Grândola Vila Morena (e com os recém-chegados José Mário Branco – com Isabel Alves Costa – e Luís Cília, lá estão José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Ary dos Santos, José Jorge Letria, João Paulo Guerra, José Duarte e tantos outros).

Há outras coisas que os ligam, algumas por pura coincidência. Nasceram ambos em Maio e morreram em Novembro, têm nomes de cinco palavras (Manuel Jorge Souto de Sousa Veloso e José Mário Monteiro Guedes Branco) sintetizados em três, ou até em três letras (MJV e JMB), tiveram ligações ao PCP (JMB na juventude, MJV militante de anos com um papel muito activo na programação da Festa do Avante!, junto com Ruben de Carvalho), ambos compuseram música para filmes (MJV para Belarmino, Uma Abelha na Chuva, Pedro Só; JMB para Gente do Norte, A Confederação, O Ladrão do Pão, Agosto, A Raiz do Coração) e ambos exerceram, a partir da música, várias outras actividades e saberes a ela ligados (escrita, produção, composição, rádio, etc.).

Um último apontamento: mais por admiração que por ironia, o nome de José Mário Branco foi dado a uma tília, no Porto (numa cerimónia, em 2018), e a uma nova espécie de invertebrado (o biólogo evolutivo José Cerca descobriu-a e baptizou-a de Stygocapitella josemariobrancoi). No primeiro caso, um poeta ofereceu um livro ao cantor, com esta dedicatória: “Para o José Mário Branco, que agora é uma árvore”. E o segundo suscitou-lhe o seguinte comentário, divertido, que me enviou por mensagem: “Extraordinário! O meu nome dado a uma minhoca!” Ainda veremos o nome de ambos em mais sítios, talvez ruas, talvez escolas. Mas decerto, e sempre, na música.

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