Onde está a discriminação?

Se Fatima Habib estivesse no Paquistão, podia jogar basquetebol com mangas compridas, mas há muitas coisas que lhe estariam vedadas.

Quando o meu filho jogava futebol no Cova da Piedade, numa daquelas manhãs geladas de inverno em que custa ver os miúdos a tremerem de frio, encolhidos à espera do primeiro apito do árbitro, descobri que não podia usar a camisola térmica de manga comprida que lhe tínhamos comprado na véspera. O regulamento proibia. Era estúpido mas tive de aceitar.

Lembrei-me disto a propósito da menina paquistanesa, Fatima Habib, impedida de jogar basquetebol em Tavira por se ter recusado a arregaçar as mangas da camisola que vestia por baixo do equipamento e a mostrar os braços, contra a tradição religiosa da família. Os alarmes da intolerância religiosa, bastante sensíveis, soaram de imediato, indiferentes ao facto de a proibição decorrer dos regulamentos oficiais da Federação de Basquetebol e nada ter a ver com questões religiosas. Uma regra que se aplica a todos por igual, feita sem qualquer intenção discriminatória, que pode até ser discutível ou no limite estúpida, foi logo transformada num instrumento retórico daqueles para quem tudo pode ser exclusão cultural e religiosa.

Discriminação é outra coisa e espero que o pai de Fatima Habib, que disse que ela só voltava a jogar quando se pudesse equipar à sua maneira, também lhe fale disto. Em 2008, apenas 2% das mulheres que participaram nos jogos olímpicos de Pequim eram islâmicas, apesar desses países representarem 20% da população mundial. Só em 1984 é que a primeira mulher islâmica ganhou uma medalha olímpica (Women and Sport in Islamic Countries, Gertrud Pfister). O maior obstáculo à participação das mulheres desses países no desporto tem a ver precisamente com os equipamentos desportivos e com a forte repressão da sexualidade feminina, associada à exibição pública do corpo. A mulher deve evitar aparecer em público e se o fizer deve usar roupa “decente”, que cubra o máximo possível do corpo. Isso torna virtualmente impossível, por exemplo, que mulheres pratiquem desportos como natação ou voleibol de praia. Ou então, coloca-as numa evidente posição de desvantagem, como aconteceu com Rogaia Al-Gassra, do Bahrein, que teve de correr os 100 e 200 metros nas olimpíadas de Atenas de calças, manga comprida e lenço na cabeça. O dress code muito mais restritivo no desporto feminino tem, portanto, nos países islâmicos um impacto discriminatório no número de mulheres que praticam desportos e nos resultados desportivos que alcançam em competições (The sports participation and social class relationship among female athlete of Pakistan, 2016, Abida Naser).

Se Fatima Habib estivesse no Paquistão, podia jogar basquetebol com mangas compridas, mas há muitas coisas que lhe estariam vedadas. Basta lembrar o exemplo de Maria Toorpakai Wazir, que praticou halterofilismo e jogou squash disfarçada de rapaz, com nome falso, até ser descoberta e ter recebido ameaças de morte, obrigando-a a ficar três anos a treinar em casa contra uma parede até escapar para o Canadá e cumprir o sonho de ser uma das melhores do mundo no seu desporto favorito. Ou, então, o exemplo de Malala Yousafzai, prémio Nobel da Paz, que em 2017 foi duramente criticada pela imprensa do Paquistão e comparada com uma estrela porno, só por se ter apresentado na Universidade de Oxford vestida com jeans apertados, apesar de ter a cabeça coberta por um lenço.

No Paquistão, uma menina europeia cristã que quisesse jogar basquetebol teria provavelmente muito mais dificuldade para o fazer de braços descobertos do que Fátima Habib teve para jogar em Portugal com mangas compridas. É que, entretanto, a Federação de Basquetebol já lhe assegurou as condições necessárias para jogar, oferecendo-lhe os “acessórios necessários”. Este exemplo faz-me regressar à memória do caso do meu filho com uma certa perplexidade. Se ele fosse de uma família muçulmana e tivesse argumentado que se sentia excluído, em vez de se queixar do frio e da estupidez de ser obrigado a jogar de manga curta e calções, teria tido mais sorte.

O nosso modelo de sociedade assenta num princípio de respeito pela diferença, mas com equilíbrio e harmonização de direitos conflituantes. À luz deste princípio, torna-se difícil perceber se em certos casos o que está em causa é o respeito pela singularidade das minorias ou, ao contrário, a imposição transformadora dessa singularidade às maiorias.

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