“Cristo foi o precursor da separação entre Estado e Igreja”: o ensaio de Freitas do Amaral a título póstumo

O ex-líder e fundador do CDS escreveu um ensaio de 89 páginas que é publicado esta sexta-feira, já depois da sua morte, a 3 de Outubro.

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O ex-líder do CDS morreu a 3 de Outubro ENRIC VIVES-RUBIO

Jesus Cristo foi o precursor do princípio da separação entre a Igreja e o Estado, apesar de não ter sido um político, defendia Freitas do Amaral, ex-líder do CDS, que morreu a 3 de Outubro. Esta e outras reflexões são publicadas esta sexta-feira, num livro a título póstumo. Partindo da velha máxima “A Deus o que é de Deus, a César o que é de César”, Diogo Freitas do Amaral utilizou “um opúsculo”, com a chancela da Bertrand Editora e do Círculo de Leitores, para fazer um ensaio de 89 páginas sobre As Ideias Políticas e Sociais de Jesus Cristo. Uma das conclusões é a de que foi Cristo o verdadeiro precursor do princípio da “separação entre a Igreja e o Estado”, quando insistiu que “a religião tinha a ver com Deus, a autoridade cívica pertencia ao Imperador: a Deus o que é de Deus, a César o que é de César”.

Para o ex-candidato a Presidente da República, ficou assim definida, “com total clareza”, a regra da separação entre religião e política, “de onde resultou mais tarde, como seu corolário, o princípio da separação entre a Igreja e o Estado ou, havendo mais que uma confissão religiosa no mesmo país, entre as igrejas e o Estado”.

“Todos sabemos que a prática, nos países cristãos, não foi sempre esta, mas é importante sublinhar que o princípio, a noção-chave, a ideia-mestra, foi da autoria de Jesus Cristo, há cerca de dois mil anos”, argumentava o antigo presidente dos democratas-cristãos no livro, sustentando que antes a ideia “não ocorrera a ninguém”, até porque “os primeiros imperadores romanos consideravam-se deuses, eles próprios”.

Partindo dos quatro evangelhos que formam o Novo Testamento (Mateus, Marcos, Lucas e João), Freitas do Amaral analisou o contexto histórico da vida de Jesus e transportou algumas das suas ideias para a actualidade. Com uma vida em que se assumiu como “católico, apostólico, romano” e admitindo “não ter credenciais para escrever sobre problemas teológicos, exegéticos ou hermenêuticos”, o professor universitário fez uma análise política e social do pensamento de Cristo, assumindo que poderá ter “uma dupla utilidade” para os cristãos, de “chamar de novo a atenção para o facto de que, como Jesus avisou, nem todo o que diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no reino do céu”. Para os não cristãos, seguidores de outras religiões e não crentes, “sublinhar que Jesus Cristo não tinha intenção de pregar aos convertidos, mas sim aos que se sentiam perdidos ou incompletos na sua vida”. Outro “aspecto fundamental” focado por Freitas é o de “uma nova concepção de autoridade, do Poder e do Estado”.

“O sábado foi feito para servir o Homem, e não o Homem para servir o sábado”, escreveu S. Marcos no Evangelho, o que o ex-líder do CDS se encarregou de traduzir à luz dos dias de hoje. “O Estado foi feito para o Homem, e não o Homem para o Estado”, ou melhor, os poderes da autoridade do Estado são apenas “um meio para alcançar um fim, o bem comum é que é o fim a atingir”, escreveu Freitas do Amaral.

O episódio bíblico de “O Bom Samaritano” é utilizado para definir aquilo que hoje se designa por defesa dos Direitos Humanos e a harmonia entre os povos. “Porque a noção da dignidade essencial de cada ser humano, anterior e superior ao Estado, provém do ensinamento cristão de que todos os homens são filhos de Deus, e que este a todos, sem excepção devota um amor infinito”, sublinhou.

Freitas do Amaral não esqueceu também os apelos de Jesus Cristo à paz, entre os homens, entre as famílias, entre as nações. “Não há nos Evangelhos uma condenação formal da guerra entre nações. O que, aliás, permitiu a vários doutores da Igreja, a partir dos séculos XVI e XVII, elaborar a doutrina da ‘guerra justa’ e da ‘guerra injusta’, hoje consagrada — em larga medida — no artigo 51.º da Carta das Nações Unidas”, invoca, numa alusão ao direito da legítima defesa quando um dos países for atacado.

Mas Jesus foi também pioneiro na “aceitação da distinção entre governantes e governados, ou seja, a rejeição do anarquismo” — quando defendeu que “Todo o poder vem de Deus” —, bem como da ideia de “obediência às leis e decisões legítimas dos governantes” ou a “condenação da fuga aos impostos” — “a César o que é de César”, ou seja, “o pagamento dos tributos tinha o rosto de César, os impostos eram devidos ao titular do Império Romano”.

Em suma, Cristo “não foi um líder político, nem exerceu qualquer cargo, função ou actividade política”, e até afirmou, para dissipar todas as dúvidas, “o meu reino não é deste mundo”. Mas, “se não tinha ambições políticas, não ocupou cargos políticos, nem criou nenhum movimento político, o certo é que tinha, como é natural, ideias políticas”.

“Podemos concluir, portanto, que Jesus Cristo — reafirmando sempre que “o seu reino não era deste mundo”, pelo que ele não pretendia ser, nem foi, um líder político ou um governante - traçou os princípios fundamentais de uma concepção política humanista e civilizada: a paz entre as nações, a não-violência como método de convivência humana, a concórdia no seio das famílias, a separação entre a Igreja e o Estado, o dever de pagar impostos, a obrigação de obediência às leis e às decisões legítimas dos órgãos governativos, a função governamental como um serviço prestado a todos, e não como um privilégio pessoal a desfrutar em proveito próprio, e a raiz dos Direitos Humanos, assentes no direito à vida ("não matarás"), à liberdade religiosa (Sermão da Montanha), à protecção da sociedade aos mais pobres (idem) e no dever de amar e respeitar o próximo como a si mesmo”, assinalou.

Em conclusão, Freitas do Amaral considerou que a Doutrina Social da Igreja, iniciada oficialmente pela Papa Leão XIII, em 1891, e hoje “vivificada de modo impar” pelo Papa Francisco “é, de facto, rigorosamente fiel a todos os ensinamentos sociais de Jesus Cristo”.

Por isso, concluiu que “é uma pena — é mesmo motivo de escândalo — que um número considerável de católicos convictos (professores, empresários, gestores, políticos, jornalistas) não se sintam obrigados em consciência a seguir essa doutrina, e a ignorem ou menosprezem na sua vida profissional, sem fazerem o que têm o dever de fazer ou agindo contra as proibições que devem acatar”.

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