Os deslizes de Need for Speed Heat

A Ghost Games traz um jogo onde a adrenalina domina e o prazer nas curvas é inegável. Mas é também um jogo com problemas na inteligência artificial e com um arco narrativo fraco.

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Sabemos de antemão que a jogabilidade da série Need for Speed pertence aos domínios arcada, oferecendo momentos avulsos de encher o olho e de deixar a guelra cheia de sangue. Com Need for Speed Heat, a Ghost Games assina uma obra de provas de competição automóvel com mecânicas pensadas para fazer o jogador sentir-se o melhor piloto de Palm City – de dia ou de noite. 

Palm City é a cidade fictícia que serve como pano de fundo às corridas e à trama de Heat. Ainda que não seja a componente primordial de um jogo de corridas, neste caso a história é descartável, entrando e saindo de cena sem deixar nomes ou momentos marcantes. Colocando em choque directo a força policial e os participantes em corridas ilegais, graças a clichés e a diálogos enlatados vamos ficando a saber que a polícia não obedece necessariamente à legalidade para combater as corridas que rasgam as ruas inspiradas na Flórida.

É um mapa que se abre à frente dos nossos olhos. Conduzimos pela cidade, acedemos a marcadores com provas secundárias (de sprint, em voltas a circuitos, drift, fora da estrada, etc). Também devidamente assinalados no mapa de Palm City estão ícones com as personagens disponíveis no momento, o que – caso tenhamos os requisitos necessários – permite competir em provas que fazem avançar a história. Participar nas diversas corridas, como seria de esperar, entrega à personagem dinheiro e reputação.

Os requisitos estão associados à existência de um nível mínimo para poderem competir, uma vez que a reputação acumulada faz a personagem ir subindo de nível. Além disso, o dinheiro pode ser investido na compra de novos veículos ou de peças. O leque de parâmetros a melhorar é extenso e bem recheado, com várias actualizações ao motor, transmissão, chassis – cada secção dividida em várias subcategorias – e até incluindo melhorias auxiliares (kits de reparação, interferências com os radares da polícia, nitro mais longo, entre outras).

Uma das principais novidades apresentadas por Heat é a possibilidade de o jogador escolher se quer competir durante o período nocturno ou diurno, algo que está associado ao progresso que é feito. Durante o dia, as provas espalhadas pelo mapa servem sobretudo para engordar a conta bancária. Troquem para as noites de Palm City e as corridas atribuem sobretudo reputação. Nestes casos, as competições são muitas vezes acompanhadas por perseguições policiais, que se podem prolongar após a bandeira axadrezada ter sido mostrada.

É o jogador que terá de saber quando é altura de arriscar um pouco mais ou de dar a noite como terminada. Quantas mais corridas fizerem, mais atraem a atenção da polícia, ou seja, maior é o heat. E na prática, o heat é um multiplicador da reputação que já tiverem amealhado. Contudo, maior será também a probabilidade de serem apanhados, uma vez que polícia vai aumentando a presença nas ruas, podendo ainda chamar helicópteros, camiões, e recorrer até a cintas com espigões.

É uma tentação e um risco, portanto. A reputação só fica definitivamente com a personagem depois de regressarem à garagem e terminarem a noite. Se forem apanhados, os ganhos sofrem um retumbante corte. É um sistema que resulta, não só pela adrenalina que liberta, mas porque o risco/recompensa acontece no momento – tal como a sensação entusiasmante de escapar, tentando tudo o que sabemos depois de as probablilidades estarem contra nós.

No capítulo da jogabilidade, a Ghost Games ajustou a forma como podem enfrentar as curvas. Na prática, basta soltar o acelerador, apontar a frente do carro e voltar a acelerar para que a traseira fique solta. E enquanto o veículo vai deslizando, é fácil controlar o ângulo e a trajectória conjugando o volante e o acelerador, parcialmente porque mesmo sendo uma obra arcada, é uma jogabilidade com “peso” (a maior omissão é o facto de não ser possível conduzirmos com uma perspectiva do interior dos veículos). Não são necessárias muitas voltas para que esta forma de abordar as curvas se torne natural e, verdade seja dita, muito mais espectacular do que a habilidade da maioria.

Como este deslizar é incentivado e não resulta numa quebra acentuada de velocidade, fazer ultrapassagens enquanto o metal passa a centímetros de outro carro ou de um obstáculo permite um ego momentaneamente insuflado. A maioria das provas assenta em traçados que enaltecem estes processos, serpenteando por diversas encostas ou ignorando o bom senso e entrando numa curva de noventa graus com uma velocidade que em tantos outros jogos era sinónimo de uma violenta colisão contra as barreiras.

As corridas, porém, não estão isentas de alguns problemas associados à inteligência artificial, que acabam por mitigar a diversão. Em algumas provas ascender e manter a liderança é mais fácil do que noutras. Há, por exemplo, algumas corridas em o fosso entre lugares não parece permitir conquistar posições – ou, verdade seja dita, perdê-las.

Ainda pior são as injustiças sentidas quando a polícia está no nosso encalço. Todos os participantes nestas corridas estão a fazer algo ilegal, todavia, as investidas da lei parecem focadas sobretudo na nossa viatura. Lidar com tudo isto enquanto há uma corrida para ganhar poderia ser apenas uma consequência de quem está a semear o caos na cidade se todos os concorrentes tivessem que fazer o mesmo. Assim, entre incontáveis abalroamentos, perder a trajectória numa curva ou perder uma prova está por múltiplas instâncias associado a uma sensação de injustiça, pois não poderíamos ter feito melhor dadas as circunstâncias.

Need for Speed Heat é uma proposta graficamente sólida. Jogado num PC em Ultra, são incontáveis os apontamentos que ajudam a enaltecer a atmosfera de Palm City. Há a sensação de velocidade e, sobretudo, bons efeitos da chuva e de iluminação, especialmente durante as noites. A Ghost Games tem o mérito de construir uma obra apelativa, mas foi também muito inteligente na maneira como muniu a sua obra de cores e vistas que colocam em montra esse trabalho.

O uso de tons garridos como o rosa nos néons permite um jogo de reflexos que encantam. O dia e a noite servem para que a cidade esteja em constante mutação: desde as montanhas com as antenas e os seus sinais de aviso encarnados até às praias, onde chegam a decorrer provas pelo areal, entre as dunas, não é um mapa colossal, mas são quilómetros quadrados com vistas e terrenos diversos.

No campo da sonoplastia, os resultados são menos contundentes. Os efeitos sonoros dos carros e até dos embates estão bem patentes, sendo até possível personalizar o “cantar” do vosso carro. Porém, não só a vocalização dos diferentes intervenientes no arco narrativo está assente em prestações que fazem pouco mais que o mínimo, como a banda sonora devia ter mais diversidade de géneros e, sobretudo, ter mais temas para que a repetição não se fizesse sentir tão cedo.

Antes da conclusão, algumas notas adicionais. São mais de 120 carros que podem comprar e melhorar. É muito pouco provável que os coleccionem a todos, mas há uma variedade sólida que chega para nos deixar conduzir alguns clássicos da era moderna, como o McLaren P1, o Ferrari LaFerrari e ainda o Porsche 918 Spyder.

E há ainda a possibilidade de correrem contra outros jogadores de carne e osso. Quando começam uma sessão em Heat, podem optar por jogar solitariamente ou online.

Need for Speed Heat será conhecido pelo sistema noite/dia e pela forma como a jogabilidade foi desenhada para transformar quem joga em herói da borracha queimada. As perseguições e a emulsão gráfica proporcionam descargas de adrenalina, mas nem tudo é um mar de rosas. Não é o falhanço completo que muitos chegaram a agourar, mas não é também o inquestionável regresso à forma que deu nome à série da Electronic Arts.

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