Alt+tab: estamos a querer enganar quem?

É engraçado, mas sem piada nenhuma, que continuemos a trabalhar o mesmo número de horas que trabalhavam os nossos avós. Tudo evoluiu — dos drones aos robot que nos aspiram a casa —, à excepção do sistema laboral, que cristalizou.

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Brad Neathery/Unsplash

São bem conhecidas as capacidades camaleónicas do ser humano no que toca a garantir a sua imagem e, por sua vez, a respectiva sobrevivência. Os nossos instintos mais primários atiram-nos para uma dança constante entre quem realmente somos e quem precisamos aparentar ser. O quotidiano é um baile de máscaras por excelência e, normalmente, é no local de trabalho onde nos aprontamos com o melhor disfarce. Ora não fosse este o garante da vida que levamos.

Não vou entrar pelo facto de sermos um dos países da Europa onde se trabalha mais horas e, ainda assim, ouvirmos barbaridades como “O português não quer fazer nada”. Chefias e patrões dizem que não somos produtivos, demarcando-se por completo de toda e qualquer responsabilidade. No entanto, lá fora, são inúmeros os casos de sucesso com trabalhadores portugueses. A culpa é da equipa ou do treinador?

É engraçado, mas sem piada nenhuma, que continuemos a trabalhar o mesmo número de horas que trabalhavam os nossos avós. Tudo evoluiu — dos drones aos robot que nos aspiram a casa —, à excepção do sistema laboral, que cristalizou. Provavelmente, não quis deixar o sistema educativo sozinho. Enfim, a verdade é que permanecemos reféns das regras que nós mesmo criámos: todos nos queixamos do trânsito, da falta de tempo para nos dedicarmos ao que gostamos e dos salários que, na maioria dos casos, apenas nos permitem sobreviver.

Grande confusão, não é?

Talvez uma das soluções poderia passar por deixarmos de esperar que alguém nos venha salvar — nada contra o D. Sebastião. Lamento, mas isto parece-me muito mais profundo do que uma mudança de governo, de patrão ou de nevoeiro. Temos historial mais do que suficiente para que possamos afirmar que isto tem de passar mais por “nós” e menos por “eles”.

Um bom começo seria desapegarmo-nos desta associação tão comum baseada na crença que “se é trabalhador, então é boa pessoa”. Isto está um pouco fora do prazo, não acham? Gastar muitas horas a trabalhar, ou no local de trabalho, nunca fez de ninguém um ser humano excepcional. Trabalhar muito tempo exige menos capacidade do que ser eficiente e, provavelmente, este é o principal motivo pelo qual permanecemos encostados a esta premissa.

O “dividir para reinar” também se mantém actual como nunca. Só isto justifica que, em pleno século XXI, ainda se oiça um colega perguntar ao outro se vai almoçar a casa, depois de este arrumar as suas coisas para sair às 18 horas em ponto. Cumprir o horário de saída, ou sair antes do chefe, parece mal. E como nós estamos mais preocupados em parecer bem do que “ser bem”, vamos fingindo. Ninguém consegue, a longo prazo, ser produtivo durante oito horas, quanto mais 10 ou 12. Daí os incontáveis cigarros e idas ao café para ir passando o tempo. Enviar emails às 4 horas, a partir de casa, também não é sinónimo de “vestir a camisola”, podem ser apenas insónias ou desentendimentos matrimoniais.

Depois ainda há os que têm a “sorte” de trabalhar ao computador e, por isso, podem dar-se ao luxo de ir saltitando entre separadores. Polegar na tecla Alt, mindinho no Tab, e aí vão eles. “Nem sabes, já tratei de tudo! Marquei os voos e os hotéis enquanto estava no trabalho.” Achamos que o facto de estarmos a ser pagos para tratar de assuntos pessoais revela uma esperteza sobre-humana. Somos autênticos ninjas do ​open space​, mais alertas do que um guarda nocturno quando entra ao serviço. Ninguém nos topa! Mas, no fundo, estamos a querer enganar quem? Isto traz-me à cabeça a imagem de um recluso que, apesar de encarcerado, se delicia com o facto de ter enganado o guarda prisional. É tudo muito bonito, mas não deixa de estar preso.

Chega de fingirmos ser alguém que não somos. Quando mentimos e não trabalhamos de forma honesta, somos nós os principais lesados. Acobardamo-nos por entre máscaras e estratagemas, convencendo-nos de que é assim que deve ser. Se nos custa a acordar todas as manhãs e vamos para o trabalho, mas depois não estamos lá, então algo tem de mudar. Já não precisamos de mais sinais do universo. Não só para o bem da empresa, mas, fundamentalmente, para a nossa saúde. A mentira irá acabar por nos apanhar e quanto mais tempo passar, maiores serão os juros a pagar.

Andar uma vida inteira com um traje que não é o nosso, pesa imenso. Precisamos de dar o benefício da dúvida à pessoa que somos e, pelo menos, tentar viver de acordo com a nossa essência. Mesmo que ainda não saibamos ao certo quem somos e o que queremos, temos o dever de ir aprendendo o que não serve de todo os nossos interesses. Não estou a dizer que é fácil, na verdade é um desafio tremendo, mas vale muito a pena. Resta-nos confiar e aceitar que se somos assim, então deverá existir algum motivo que, muito provavelmente, acaba por transcender a própria percepção. Viver uma mentira dói muito mais do que abraçar a nossa verdadeira natureza. Já imaginaram o que iria acontecer ao stress, à frustração e à ansiedade se cada um de nós vivesse de e com verdade?

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