Trichet diz que BCE salvou o euro em 2010 e “Portugal sabe bem disso”

O antigo presidente do BCE, Jean-Claude Trichet, considera que a Europa deve defender “ferozmente” os seus interesses no comércio global e não pode deixar que as decisões sejam tomadas apenas pelos Estados Unidos e China.

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Jean-Claude Trichet foi o segundo presidente do BCE, entre 2003 e 2011. É actualmente presidente do conselho de administração do Bruegel, um think tank europeu especializado em economia LUSA/ANTÓNIO COTRIM

Jean-Claude Trichet, antigo presidente do BCE, afirmou à Lusa que, juntamente com a sua equipa, salvou o euro em 2010, quando comprou títulos de dívida de Portugal, Grécia e Irlanda, na altura alvos de uma “especulação devastadora” nos mercados.

“Salvei o euro [juntamente com a minha equipa], em 2010, e Portugal sabe bem disso, porque comprei títulos de dívida portuguesa na altura, quando houve uma especulação devastadora” contra Portugal, a Grécia e a Irlanda, afirmou o antigo presidente do BCE em entrevista à Lusa, à margem da conferência “O euro 20 anos depois: a estreia, o presente e as aspirações para o futuro”, que decorreu no Museu do Dinheiro, em Lisboa, na sexta-feira.

Jean-Claude Trichet foi o segundo presidente do BCE, entre 2003 e 2011, depois do holandês Wim Duisenberg (que foi o primeiro presidente da instituição), e é actualmente presidente do conselho de administração do Bruegel, um think tank europeu especializado em economia.

Em 2010, Portugal era um dos países da zona euro que estava na mira dos mercados financeiros, com os juros das obrigações portuguesas a registar máximos históricos, reflexo do risco percepcionado em relação ao país. Em Novembro de 2010, os juros da dívida portuguesa a dez anos superaram os 7% no mercado secundário — um máximo histórico e o nível a partir do qual o então ministro das Finanças, Fernando Teixeira dos Santos, tinha apontado, numa entrevista ao Expresso, como a barreira com a qual se começava a colocar a hipótese de recorrer ao resgate do fundo europeu e do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Em Abril de 2011, Portugal pediu ajuda financeira externa.

Em entrevista à agência Lusa, o antigo presidente do BCE recordou que, na altura, “o mercado de Nova Iorque estava convencido de que o euro iria desaparecer e que a zona euro seria desmantelada”. “Tivemos de lidar com a grande crise desencadeada pela falência do [banco] Lehman Brothers nos Estados Unidos e tomar uma série de decisões extraordinárias”, que passaram pela compra de obrigações do Tesouro de Portugal, da Grécia e da Irlanda, recorda o economista francês, adiantando que foram, naquela altura, “decisões muito ousadas” e “muito criticadas”.

Trichet respondia quando questionado sobre os oito anos do mandato do seu sucessor, Mario Draghi, considerado por muitos o “salvador do euro” pelo conjunto de medidas que tomou, e que cedeu lugar na liderança do BCE a Christine Lagarde, que tomou posse em 1 de Novembro. O antigo presidente do BCE disse que “vê uma grande continuidade nos esforços” empreendidos por si e por Draghi “para manter o empreendimento histórico do euro e da Europa no seu conjunto”. “Porque o euro está na vanguarda da construção europeia”, disse.

Que herança de Draghi para Lagarde?

Sobre a nova presidente do BCE, Christine Lagarde, o economista francês sublinhou que “a continuidade é muito importante”. “Tenho a certeza que Christine Lagarde manterá a continuidade das decisões que foram tomadas no tempo de Mario Draghi, da mesma forma que existiu uma continuidade entre o meu mandato e o de Draghi”, defendeu.

Terá Draghi deixado uma herança pesada a Christine Lagarde, perante as divergências no seio do BCE sobre as medidas de estímulo à economia da zona euro? A resposta de Trichet é simples: “não”. “Na altura em que eu era presidente do BCE tive a demissão de dois colegas que não estavam satisfeitos com as decisões que tomámos”, recordou, acrescentando que “é normal nem todos os membros do Conselho de Governadores estarem de acordo” e que é algo que acontece “em todos os bancos centrais”.

Apesar de o presidente do BCE ser a pessoa que “apresenta as decisões a todos os cidadãos, aos mercados e à opinião pública”, tendo, por isso, maior visibilidade, as decisões são tomadas pela maioria dos membros do conselho de governadores.

Questionado sobre se acredita que Lagarde conseguirá convencer os governos da zona euro de que é preciso actuarem a favor da economia da zona euro e não apenas o BCE — aquilo que nem Trichet nem Mario Draghi conseguiram —, o economista manifestou-se convicto de que existe um consenso nesse sentido, que inclui a actual presidente da instituição. O antigo presidente do BCE aponta, no entanto, ser “óbvio que não é fácil para os outros parceiros, incluindo governos, deputados e outros poderes executivos tomar decisões neste domínio”.

"Europa não pode deixar EUA e China a tomar decisões"

Jean-Claude Trichet considera que a Europa deve defender “ferozmente” os seus interesses no comércio global. E frisa: “Não podemos deixar que as decisões sejam tomadas pelos Estados Unidos e pela China sozinhos”. “Somos a economia aberta mais importante do ponto de vista do comércio global, somos o mercado mais importante do mundo no que diz respeito ao comércio global, e devemos defender ferozmente o nosso interesse”, afirmou o antigo presidente do BCE, em entrevista à agência Lusa.

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O economista Jean-Claude Trichet, antigo presidente do BCE, manifestou-se convicto de que o Brexit “foi um erro” ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Questionado sobre como pode uma economia como a portuguesa, muito aberta ao exterior, proteger-se de riscos internacionais, o economista francês lembrou que Portugal está integrado na zona euro, reforçando a importância de “ser flexível” e parte de um “conjunto mais amplo e coeso de países e economias”.

Trichet afirma que se trata, na verdade, de um problema da União Europeia (UE) no seu conjunto. “A União Europeia no seu conjunto e a zona euro são mais abertas ao comércio internacional do que os EUA. Posso até dizer que somos duas vezes mais abertos ao comércio internacional em termos de volume de exportações e importações tendo em conta o PIB”, referiu o antigo presidente do BCE.

O economista acrescentou que a UE está também duas vezes mais integrada nas cadeias globais de valor que os EUA, o que faz com que o proteccionismo norte-americano contra a China, mas também contra a Europa, “constitua um perigo muito importante” para os europeus. “Porque somos duas vezes mais vulneráveis que os Estados Unidos a uma diminuição do comércio global, a uma diminuição das nossas exportações”, salientou o antigo presidente do BCE.

Questionado ainda sobre o “Brexit”, Trichet manifestou-se convicto de que “foi um erro”. “Não é do interesse do Reino Unido e creio que também não é do interesse da Europa”, afirmou.

O antigo presidente do BCE admite que alguns franceses pensam que, uma vez que o Reino Unido não embarcou verdadeiramente no processo de integração da União Europeia, não partilhando totalmente a visão histórica de longo prazo, talvez fosse melhor sair. Contudo, frisa não pensar dessa forma: considera ser “realmente uma pena” a saída do Reino Unido da UE, com impacto na “influência da Europa como um todo e também na sua capacidade de ser uma voz forte no cenário global”.

Situação da zona euro é “mais sólida que em 2008"

“É inegável o facto de estarmos numa posição mais sólida do que em 2008, quando tive de enfrentar o colapso do Lehman Brothers”, afirmou ainda Trichet, defendendo, no entanto, que isso não permite ser complacente. “Devemos manter-nos vigilantes porque, mesmo numa situação mais forte, podemos ter de lidar com choques vindos do resto do mundo”, disse o antigo presidente do BCE à agência Lusa.

O economista francês refere que existe hoje o “choque decorrente da redução no comércio internacional”, com impacto no abrandamento do crescimento económico global que afecta o crescimento económico da zona euro. Jean-Claude Trichet referiu também que a zona euro pode ter de lidar com outros fenómenos, como “um drama nas economias emergentes ou uma grande recessão nos Estados Unidos”. “Isso seria certamente um choque para nós”, salientou.

Questionado sobre o que pode a zona euro fazer para estar melhor preparada para enfrentar potenciais choques, Trichet apontou a união bancária e a união do mercado de capitais como pontos “muito importantes para reforçar a solidariedade e a coesão na zona euro”. O economista francês frisou também que são necessárias “boas decisões para reforçar a resiliência”, quer ao nível da zona euro, quer ao nível interno de cada país, destacando a importância de um procedimento de equilíbrio económico, que monitorize a competitividade de cada economia da zona euro.

Inflação na zona euro

Na entrevista à Lusa, Trichet defendeu ainda que as posições do Parlamento Europeu sejam “a última palavra em caso de decisões muito difíceis na zona euro porque isso iria reforçar a responsabilidade democrática da zona euro”.

Sobre uma possível descida do objectivo do BCE para a inflação na zona euro, actualmente “abaixo mas próximo de 2%”, como sugeriu recentemente o governador do banco central austríaco, Robert Holzmann, Trichet respondeu não gostar de mudanças na definição da estabilidade de preços, por um lado, pelo facto de os bancos centrais serem “pilares da estabilidade a médio e longo prazo” e existirem para “ancorar expectativas”.

Por outro lado, o economista francês realçou que, antes da última grande crise financeira, apenas o BCE tinha esta meta para a inflação, mas, “desde a crise e por causa da crise”, também a Fed e o Banco do Japão decidiram juntar-se ao grupo que considera os 2% como a definição da estabilidade de preços. “Considero que foi uma muito importante demonstração de convergência conceptual dos principais bancos centrais como consequência da crise”, declarou.

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