Um muro, um homem e um violoncelo

A condenação, sem qualquer receio, do totalitarismo comunista soviético é imprescindível para a afirmação plena daquilo que Mário Soares costumava designar como “o socialismo em liberdade”.

1. Mstislav Rostropovitch sentado junto a um muro a tocar violoncelo rodeado por uma pequena multidão atenta. Esta imagem correu o mundo há trinta anos atrás. Não era caso para menos. Rostropovitch estava a tocar a Suite n.º 1 para violoncelo de Johann Sebastian Bach diante de um dos últimos pedaços do Muro de Berlim que ainda permanecia de pé. Tinha-se deslocado propositadamente de Paris até àquele inesperado lugar para aí celebrar a liberdade. Haveria, aliás, melhor forma de o fazer? Ele próprio responde: “As palavras são incapazes de exprimir algumas alegrias. Pobres, as palavras, insignificantes, insuficientes. Mas a música chega lá.”

À semelhança de muitos outros artistas, escritores e cientistas, ele fora primeiro perseguido no interior da União Soviética e posteriormente condenado ao exílio. Naquela ocasião considerava-se um apátrida. Que crime tinha cometido? O de amar a liberdade que agora celebrava. Um muro, por mais real que seja, é quase sempre, também, uma metáfora. O Muro de Berlim era, por isso mesmo, muito mais que um obstáculo físico que marcou profundamente a vida de milhões de alemães. Era o símbolo de um projecto político que em nome de uma vontade de emancipação humana recorreu cinicamente aos mais impiedosos métodos de subjugação da liberdade individual. Naqueles dias de Novembro o que estava a ruir era todo o edifício do comunismo soviético. Nas ruas e nas praças de quase todas as cidades do Leste europeu mulheres e homens extasiados festejavam o fim do imenso pesadelo político que havia atormentado até então as suas vidas.

Trinta anos depois há quem se atreva a insinuar que talvez essas celebrações tenham sido precipitadas e excessivas. Não estou sequer a referir-me às dementes e ominosas considerações a que o Partido Comunista Português já nos habituou sempre que se pronuncia sobre este tema. Refiro-me a outro tipo de gente que, um pouco pela calada, vai tentando branquear o legado do comunismo soviético. Pouco a pouco tudo se vai relativizando, oportunos mantos de silêncio recobrem memórias sombrias, perversas justificações suavizam factos históricos hediondos. É por isso mesmo que é necessário voltar àquela fotografia de um velho instrumentista genial a tocar Bach para a humanidade inteira.

2. Em Julho de 1990 Mário Soares prefaciou a edição portuguesa de um livro de Václav Havel intitulado Interrogatório à Distância. Fê-lo a pedido do próprio autor. A dado passo Soares escreveu o seguinte: “Com a sua reeleição Václav Havel tornou-se o representante máximo do seu país em liberdade, uma referência simbólica obrigatória e uma esperança para milhões de compatriotas e mesmo para todos os democratas que seguem com paixão a evolução, ainda incerta, dos países europeus do Leste, em trânsito complexo, contraditório mas necessário, do totalitarismo comunista para situações de pluralismo democrático, próprio das sociedades abertas e das economias de mercado.” Mário Soares só conhecia a linguagem da liberdade. Nada lhe seria mais estranho do que uma qualquer espécie de novilíngua orwelliana. Ele sabia que a tirania e a opressão começam precisamente na manipulação das palavras. Era desassombrado porque detestava o medo e deplorava os pequenos calculismos retóricos que não são senão uma forma especialmente cobarde de conviver com a mentira. Ora, se há coisa que o comunismo soviético foi, foi o regime da mentira cientificamente organizada. Soares sabia-o e por isso não teve qualquer receio de se referir a ele como um sistema totalitário.

Releio com angústia estas palavras da maior figura da democracia portuguesa. Quantos dirigentes da esquerda democrática europeia escreveriam hoje, com esta nitidez absoluta, o que ele escreveu há quase trinta anos atrás? Quantos deputados do PS actual a subscreveriam sem hesitações?

3. Depois de citar Mário Soares cito o próprio Havel: “Houve uma época em que eram socialistas todos aqueles que simpatizavam com os oprimidos, os humilhados, todos aqueles que se opunham aos benefícios imerecidos, aos privilégios hereditários, à injustiça social, às barreiras imorais às quais o homem estava condenado a submeter-se perdendo a dignidade. Fui socialista nesse sentido moral e afectivo e sou-o ainda. Só que já não designo a minha posição por essa expressão.” Compreende-se, dado o contexto em que decorreu a sua vida, a aversão do antigo Presidente checo pela palavra socialismo. Contudo, essa palavra precisa de ser inteiramente resgatada da carga memorial negativa resultante da sua contaminação pelo sistema opressivo soviético. O socialismo democrático, herdeiro da grande tradição iluminista franco-kantiana e de todos os movimentos de emancipação social de índole democrática, é tão necessário hoje como o era há cem ou duzentos anos atrás. A queda do comunismo não transformou o capitalismo, por si só, num modelo económico-social apreciável ou inultrapassável. A tese de que entre o capitalismo selvagem e o socialismo estatizante não há nenhuma solução alternativa só serve os interesses destas duas posições extremistas. A condenação, sem qualquer receio, do totalitarismo comunista soviético é imprescindível para a afirmação plena daquilo que Mário Soares costumava designar como “o socialismo em liberdade”. Esse socialismo existiu e existe e não pode, em nenhuma circunstância, ter vergonha de si mesmo.    

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