Música de orixás para atrair clientes

A Cátia limita-se a dizer “o jazz dá melhor ambiente”, e começa a tirar-me a fita-cola. As pestanas estão coladas, prontas, só falta usar o secador. Já posso abrir os olhos. Ao fim de quase duas horas estou livre da cegueira temporária.

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Mag Rodrigues

O mini-salão da Cátia, que é esteticista, abriu há pouquíssimo tempo. Tenho noção do contra-senso de juntar as palavras “mini” e “salão”, mas trata-se do nome do espaço. A Cátia divide a pequena área de trabalho com uma sócia que é cabeleireira. Ainda não a vi. Chegou quando eu já estava fechada com a Cátia no gabinete, que é pouco maior do que uma despensa. Tirando eu, que estou deitada na marquesa a pôr extensões de pestanas, e me encontro de olhos fechados com a ajuda de várias tiras de fita-cola, não há mais clientes. Só abriram as portas do mini-salão ao público — na realidade, uma porta exígua em alumínio — há duas semanas. O bairro é chique, o salão nem por isso. O marido ou namorado(?) da cabeleireira liga-lhe e é posto em alta-voz.

— Oi, amor. Tudo bem? — diz o homem, num português adocicado pelo Brasil. A cabeleireira despacha-o em menos de dez segundos.
— Agora não posso. Estou a trabalhar. Até logo — desliga a chamada.

Não tem clientes para atender, porém isso não a impede de despachar o brasileiro. Começo, então, a escutar uma música que parece indicada para a prática de capoeira ou usada em terreiros de candomblé. O telefone volta a tocar por duas vezes e oiço a cabeleireira dar informações a potenciais clientes. Escuto tudo com bastante atenção; por causa da fita-cola nos olhos não me é permitido ver. A mesma batida de qualidade duvidosa e saturante dura uns bons 20 minutos. E eu ali deitada, enquanto a Cátia vai colando as pestanas uma a uma num artesanato que demora no mínimo hora e meia, a ter de levar com aquela melodia repetitiva sem me poder mexer. Pergunto à Cátia que música é. Não sabe, diz que também a está a irritar, embora eu não tenha dito tal coisa. Suspende a colagem de pilosidades — algumas pessoas como eu são, de facto, estranhas, pois arrancam pêlos de algumas partes do corpo e noutras colam pêlos artificiais — e reclama de dentro do gabinete com a sócia.

— Esta música é sempre igual. Não dá para ouvirmos outra coisa?

A cabeleireira atira a voz de volta, explicativa:

— Isto é música de orixás! Não vês que desde que pus isto a tocar já recebemos várias chamadas? Esta música atrai clientes — sentencia a cabeleireira.

Confesso que nunca tinha pensado no potencial capitalista dos orixás. A Cátia suspira com condescendência e contrapõe:
— Tudo bem, mas cansa um bocadinho.
— Estás a queixar-te do quê? — responde a cabeleireira nitidamente irritada. — Também passamos dias inteiros a ouvir jazz porque tu gostas e eu não reclamo. Ainda por cima, aquilo é uma música que não dá para nada. A casa não mexe e uma pessoa até fica deprimida.

Temo pela sociedade profissional da Cátia e da cabeleireira. Com gostos musicais tão diferentes vai ser difícil a partilha de um espaço. Começamos a ouvir jazz. Não consigo identificar que música é, mas representa um alívio para os meus ouvidos.
— Pronto — diz a cabeleireira. — Vais ver que não aparecem clientes nem telefonam ao som disto. É que é mesmo chato.

A Cátia limita-se a dizer “o jazz dá melhor ambiente”, e começa a tirar-me a fita-cola. As pestanas estão coladas, prontas, só falta usar o secador. Já posso abrir os olhos. Ao fim de quase duas horas estou livre da cegueira temporária. Saio do gabinete e vejo, por fim, a cabeleireira. É muito mais nova do que o retrato que tracei através da sua voz. Não deve ter mais de 30 anos. Tem o cabelo pintado de ameixa madura e os olhos maquilhados com uma sombra azul berrante. Vejo também entrar uma cliente, a primeira desde que ali estou, ao som da música que a Cátia gosta. Desmentindo, assim, a teoria de atracção musical dos orixás ditada pela cabeleireira. Reparo na sua expressão de contrariedade pelo esoterismo falhado, ao saudar a nova cliente ao som do jazz.

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