Acções de promoção do novo filme de Polanski canceladas em França

Após as acusações da fotógrafa Valentine Monnier contra o cineasta, que a teria violado numa estância de esqui suíça há 44 anos, a campanha de divulgação de J’accuse está praticamente parada.

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Reuters/Charles Platiau

A campanha mediática do mais recente filme de Roman Polanski, J’accuse, inspirado no célebre caso Dreyfus – que chega esta quarta-feira a mais de 500 salas de cinema em França –, está a ser significativamente afectada pelas recentes acusações da fotógrafa e actriz francesa Valentine Monnier, que na passada sexta-feira publicou uma carta no jornal Le Parisien afirmando que o realizador a violara “com extrema violência” em 1975, na estância de esqui de Gstaad, na Suíça, quando tinha 18 anos. 

Jean Dujardin, que interpreta no filme de Polanski o oficial que denunciou a falsificação do documento usado para incriminar o capitão Alfred Dreyfus, anulou a entrevista que deveria ter sido transmitida este domingo pelo canal televisivo TF1, o mais visto em França, e também o canal público France 5 cancelou a difusão, agendada para esta segunda-feira, de uma conversa previamente gravada com Louis Garrel, o actor que encarna o próprio Dreyfus.

No mesmo dia, Garrel deveria ter participado no programa Popopop, na antena pública France Inter, mas a própria rádio, explicou a sua directora, Laurence Bloch, decidiu não difundir a conversa com o actor por esta ter sido gravada antes das revelações do jornal Le Parisien. “A questão desta nova acusação não foi colocada”, justificou Bloch, que no entanto esclareceu que a France Inter, parceira mediática da produção do filme, irá continuar a promovê-lo, já que “os ouvintes são adultos e farão aquilo que a consciência lhes ditar”.

A France Inter anunciou ainda, segundo noticia o jornal Libération, que também a actriz Emmanuelle Seigner cancelou a sua presença no programa Boomerang, difundido esta terça-feira. Seigner foi escolhida por Polanski para interpretar a amante de Picquard, Pauline Monnier, que por coincidência tem o mesmo apelido da mulher que agora acusa o cineasta de a ter violado.

E foi justamente a proximidade da data de estreia do filme que levou Valentine Monnier a decidir falar agora, 44 anos após os factos que denuncia. Ela própria o explicou ao Le Parisien, recorrendo a uma pergunta de retórica: “É admissível, a pretexto de um filme e a coberto da História, ouvir dizer ‘Eu acuso!’ àquele que vos marcou a ferro, enquanto vós, a vítima, estais impedidos de o acusar?”

Elogiado pela crítica e galardoado com o Prémio Especial do Júri no Festival de Veneza, J’accuse retoma o título da carta-aberta que o romancista Émile Zola publicou em 1898 no jornal L’Aurore, dirigida ao então presidente francês Félix Faure, defendendo a inocência do judeu Dreyfus e acusando o governo de anti-semitismo. A possibilidade de que o cineasta, ao evocar este processo histórico, esteja de algum modo a sugerir que as acusações de que tem sido alvo fazem dele uma espécie de novo Dreyfus é obliquamente aventada no próprio dossier de imprensa do filme, que inclui a transcrição de uma conversa com o filósofo Pascal Bruckner, na qual este pergunta a Polanski: “Enquanto judeu perseguido durante a [Segunda] Guerra e cineasta perseguido pelos estalinistas na Polónia, pensa que sobreviverá ao macarthismo neo-feminista actual, que o segue pelo mundo inteiro para impedir a projecção dos seus filmes e já conseguiu que o excluíssem da Academia dos Óscares?” E Polanski, sem propriamente cair na armadilha da identificação com o herói do seu filme, sempre vai dizendo: “O meu trabalho não é terapêutico. Todavia, devo admitir que conheço um grande número de engrenagens do aparelho de repressão mostrado no filme, e que isso claramente me inspirou.”

No seu testemunho ao Le Parisien, Valentine Monnier, conta que em 1975, quando teria sido violada pelo realizador, não tinha “qualquer ligação pessoal ou profissional” com Polanski, que “mal conhecia”. E relata: “Foi de uma extrema violência. Após uma descida de esqui no seu chalé de Gstaad, ele agarrou-me, bateu-me até eu me render e depois violou-me (…). Acabara de fazer 18 anos e tinha tido a minha primeira relação [sexual] poucos meses antes.”

O cineasta já fez saber pelo seu advogado que “contesta firmemente a acusação de violação” e que pondera processar Monnier, mas o Le Parisien cita, sem os identificar pelo nome, dois homens que a terão ajudado após a alegada violação e que parecem corroborar o seu relato. Se um deles confirma que Valentine Monnier queria ser protegida de Polanski, mas diz não se recordar se esta lhe falou em violação, o segundo, que a terá albergado após a agressão, conta: “Quando apareceu no meu chalé, creio que tinha uma nódoa negra na cara, e contou-me depois que tinha sido brutalmente violada por Polanski”. 

O realizador ainda hoje é alvo de um mandato de detenção da justiça americana sob a acusação de ter drogado e violado uma menor (Samantha Geimer, então com 13 anos) em 1977. Chegou a cumprir parte de uma pena de três meses de prisão por “relações sexuais ilegais”, mas quando uma posterior decisão judicial reviu a caracterização do crime e ditou o endurecimento da pena, já se encontrava em França. Depois disso, em 2010, a actriz inglesa Charlotte Lewis acusou-o de ter abusado sexualmente dela durante um casting em 1983, quando tinha 16 anos, e em 2017 foi a vez de a actriz alemã Renate Langer o acusar de a ter violado, também em Gstaad, em 1972, quando tinha apenas 15 anos. Langer chegou a apresentar queixa, que não foi aceite porque o crime, a ter ocorrido, estaria prescrito. Polanski negou todas estas acusações.

Esta nova denúncia de Valentine Monnier surge agora poucos dias após a publicação de um longo trabalho de investigação do site Mediapart, que revela, e sustenta com numerosos documentos e testemunhos, as acusações da actriz francesa Adèle Haenel contra o realizador Christophe Ruggia, que a teria importunado sexualmente entre os seus 12 e 15 anos, desde que trabalhara com ele no filme Les Diables (2002). Um caso que levou vários actores franceses, incluindo Marion Cotillard, a declararem publicamente o seu apoio a Haenel.

Confrontado com as acusações de Valentine Monnier, o responsável da Gaumont, que distribui J’accuse, disse à revista Variety que mantém a intenção de que o filme seja amplamente exibido por toda a França, a começar já esta quarta-feira com a sua estreia simultânea em 545 salas.

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