O tempo da crueldade

Em parte, o erro, depois da queda do Muro de Berlim, foi esse. Adormecemos. Deixámos de nos interrogar. Pensávamos que estava tudo inventado.

Foi um tempo de esperança e ilusão. Há trinta anos, caiu o Muro de Berlim. Recordo-me de, ainda adolescente, ficar colado à TV e aos jornais nesses dias e de me emocionar à distância, com aquele voluntarismo transformador.

Imaginou-se que a partir daí é que seria, com crescimento económico ilimitado, recursos infinitos, consumo inesgotável e, quando tudo falhasse, teríamos a tecnologia, ou, como escreveu Francis Fukuyama, “a democracia liberal poderá constituir o ponto final da evolução ideológica e a forma definitiva de governo humano e, como tal, o fim da história.”

Agora aqui estamos. Discutem-se apenas os reajustamentos do itinerário que seguimos, sem que se ponha em causa o caminho em si. O poder dominante exige aos críticos as soluções que ele próprio não consegue produzir, dessa forma criando a ideia de que as suas propostas são as únicas possíveis. Bloqueia-se o debate. Dizem-nos que mais vale deixar de lado devaneios, forma de continuarem a impor-nos as suas cruéis fantasias.

Acabámos com a utopia comunista, fomos todos atrás do sonho capitalista e a atmosfera sociopolítica que se vive hoje, ironicamente, faz lembrar o ambiente no Leste europeu antes da queda do muro — uma profunda negação da realidade, com modelos socioeconómicos a abrirem brechas por todos os lados e toda a gente a olhar para o lado, numa internalização colectiva da violência, do despudor e da ausência de solidariedade. Tudo passa a ser normal.

É normal o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, num momento afirmar de forma febril que “somos imparáveis” na Web Summit e no instante seguinte já estar a abraçar um sem-abrigo, classificando-o de “herói”, perante a voragem do circo comunicacional à sua volta, querendo saber, filmar e mostrar tudo. O vazio. E como em todas as histórias de heróis tem de haver um “mau”, horas mais tarde foi encontrado. A mãe de uma criança abandonada. E o efeito reproduz-se.

Aponta-se o dedo acusador à mulher de 22 anos. Exige-se justiça. A prisão. A deportação. E sabe-se lá o que mais. Concentram-se as falhas colectivas num só ser, independentemente das responsabilidades próprias pelo acto terrível. “Um em cada cinco trabalhadores ganha o salário mínimo”, titulava o PÚBLICO há dias, questionando como era possível existir-se assim. Duas em cada dez pessoas são pobres em Portugal, assinalava a Presidência da República em Outubro, e, se não fossem as transferências sociais, quatro em cada dez estariam em situações semelhantes, isto para já não se falar de uma classe média cada vez mais empobrecida. “Não me lembro de outro tempo com tantas desigualdades”, dizia-me, em entrevista, o actor e activista Danny Glover, de 73 anos, esta mesma semana, no Fórum do Futuro do Porto.

Ali, tentam projectar-se ideias para o futuro, mas nas mais diversas intervenções somos convidados a viajar até ao passado, para melhor perceber o presente. E o que vemos? Lógicas de dominação e violência que se repetem. As rotas transatlânticas de escravos há muito. Os barcos a naufragarem, hoje, no Mediterrâneo, com gente desesperada lá dentro.

Talvez para entender o passado seja preciso deixar de pensar que já foi. O que existe é uma actividade contínua onde o passado (experiência), o presente (acção) e o futuro (expectativa) se ligam entre si, porosos e permeáveis. Em vez de uma história com percurso contínuo, temos regressos, anacronismos, resistências, descontinuidades ou convivências.

Em parte, o erro, depois da queda do Muro de Berlim, foi esse. Adormecemos. Deixámos de nos interrogar. Pensávamos que estava tudo inventado. Pensava-se que iria ser o fim das ideologias, das classes sociais, das fronteiras. Trinta anos depois, continua tudo por criar. Mais uma vez.

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