Passar fome com peixe armazenado. Não, não estamos pior do que antes

Não me venham dizer que estamos pior. Que antigamente é que era bom. Que vivemos, hoje, um terror como nunca se viu. É fácil cairmos nessa armadilha.

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O desafio maior que os concorrentes têm de ultrapassar neste reality show é o de encontrarem comida DR

Há um programa num canal por cabo que leva os concorrentes para sítios inóspitos do planeta e os deixa sozinhos, com uma câmara de filmar, a tentarem sobreviver. Têm de encontrar comida, construir um abrigo, lidar com eventuais problemas que possam surgir (seja um animal selvagem, uma picada de uma aranha venenosa ou um pé torcido) e adaptar-se à solidão. Quem aguentar mais tempo, leva para casa uma pequena fortuna.

Para ser honesta, o programa já vai em várias temporadas e eu devo ter visto, no total, uns três ou quatro episódios, por mero acaso. Mas a última vez em que me cruzei com ele (estava um bocado entediada, a saltar de canal em canal) assisti a uma cena de que não me esqueci. Além dos problemas emocionais de quem permanece semanas completamente isolado, o desafio maior que os concorrentes têm de ultrapassar é o de encontrarem comida. Havia ali gente a fazer uma festa porque um rato tinha caído numa armadilha improvisada e quem já só comesse caldos de fungos e ervas há vários dias.

A falta de alimentos atinge tais extremos que já tinha visto uma mulher a ser obrigada pelo médico do programa a abandonar o concurso, por causa do estado de subnutrição a que tinha chegado (há um médico que vai ver os concorrentes de vez em quando). Mas o caso que me deixou a pensar foi o de um homem que, aparentemente, era um génio na pesca e tinha conseguido acumular no seu abrigo uma quantidade generosa de peixe que, entretanto, conservara, fumando-o.

Ora, este homem, provavelmente o único naquela fase do programa que não tinha problemas em ter acesso a comida, apresentava uma magreza extrema e, no dia em que me cruzei com ele, estava, precisamente, a ser informado pelo médico que tinha de abandonar o concurso, porque o corpo podia entrar em colapso a qualquer momento.

O concorrente olhava para o peixe como quem não entende. A determinada altura, lá explicou que se tinha convencido de que, se comesse apenas meio peixe por dia, com a quantidade que já tinha armazenado, poder-se-ia manter no programa por muito tempo e seria o vencedor. E habituara-se, naquelas semanas, a ingerir tão pouco alimento que perdeu a capacidade de perceber como se estava a colocar em risco.

Dei por mim a pensar que aquele homem era uma versão magra e doente de todas aquelas pessoas que andam a lamentar-se, dia após dia, de como estamos todos hoje muito pior do que “antes”. Muitas vezes sinto-me a olhar para elas como o homem olhava para o peixe armazenado que de nada lhe servira — sem compreender. Estamos pior? Pior do que quando? De quando se morria sem se chegar a combater a doença de que se padecia porque não havia ainda conhecimentos médicos suficientes ou tratamentos eficazes? De quando os miúdos iam para a escola descalços porque não havia dinheiro para sapatos (e isto quando iam à escola)? De quando as mulheres tinham de pedir autorização ao marido para se ausentarem do país? De quando se podia ir parar a uma cela de tortura por se distribuir um panfleto? Ou a um manicómio por se ser homossexual? De quando dar um beijo em público dava direito a multa?

Estamos muito longe de podermos olhar em volta e dizer que está tudo bem. Há muita coisa mal, a começar pela forma como estamos a mostrar-nos incapazes de manter o planeta saudável e habitável. As pessoas continuam a ser capazes de actos inimagináveis de horror, à mesma velocidade que conseguem ser de uma bondade e generosidade desarmantes. As injustiças são mais do que muitas e, sim, é desesperante a forma como continuamos a repetir os mesmos erros, como se não aprendêssemos nada com o passado.

Mas não me venham dizer que estamos pior. Que antigamente é que era bom. Que vivemos, hoje, um terror como nunca se viu. É fácil cairmos nessa armadilha. Basta rodearmo-nos de pessoas que também o pensam e escolhermos como única fonte de informação os mesmos canais ou jornais que só mostram o pior que o mundo tem. Se nos fecharmos nesse círculo de desgraças, conseguimos um isolamento tão perfeito como o do homem que estava a morrer à fome com um excedente de peixe disponível. E esquecemo-nos de tudo o resto. Do que já conquistámos e da esperança do que ainda poderemos vir a conseguir.

Para explicar melhor, regresso à televisão e a um diálogo que apanhei, por acaso, entre duas personagens de uma série situada algures nos anos de 1950. Sentado num automóvel, um homem lamuriava-se de como naquele seu hoje tudo era pior do que antes. Claramente cansado daquele discurso que já deveria ter ouvido várias vezes, o seu interlocutor respondia-lhe algo como: “Antes, quando estávamos em guerra?”. E o pessimista retorquia com, ah, mas as relações pessoais eram outra coisa, os vizinhos eram muito mais prestáveis. “Os que estavam vivos e não tinham morrido na guerra, queres dizer?”, respondia-lhe o outro. É isto.

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