Lula: “Eles não sabem o tesão que eu tenho para lutar por este país”

O ex-Presidente chamou Moro de “canalha” e anunciou que vai percorrer o país com os olhos nas eleições presidenciais de 2022. Acusou Bolsonaro de governar para milicianos.

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Lula em São Bernardo do Campo, no meio de uma multidão eufórica Amanda Perobelli/Reuters
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Um dia depois de sair da prisão, Lula da Silva apareceu determinado em ser ele próprio a embrulhar a bandeira do “Lula livre” e a empurrar o seu Partido dos Trabalhadores (PT) para a linha da frente da oposição ao Governo de Jair Bolsonaro, de onde esteve ausente até agora. O seu discurso em São Bernardo do Campo, no mesmo local onde 581 dias antes tinha sido levado para a prisão, mostrou que a economia irá estar no centro da sua actuação. Exigiu afinco aos seus aliados e pediu uma mobilização constante nas ruas.

Uma das questões que mais dividia os analistas antes de Lula ser libertado prendia-se com a postura que o ex-Presidente iria assumir a partir dali – entre a estratégia da moderação ou um perfil radical. A realidade insiste em ser mais complexa. Ao longo do seu discurso, de contornos bem mais políticos que o da véspera ainda em Curitiba, Lula vestiu e despiu os dois fatos conforme a sua conveniência.

O “Lula livre” pode ter sido finalmente enterrado, mas o ex-Presidente não esquece os responsáveis pelas suas condenações. Chamou o ministro da Justiça, Sergio Moro, de “canalha” e acusou o procurador que chefia a Operação Lava-Jato, Deltan Dallagnol, de “montar uma quadrilha”. “Queria provar que, mesmo preso por eles, eu dormia com a minha consciência mais tranquila que eles”, afirmou, perante milhares de apoiantes eufóricos que encheram as ruas próximas da sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, perto de São Paulo.

Moro foi rápido a reagir. Com uma curta mensagem publicada no Twitter, o ministro disse que não responde “a criminosos, presos ou soltos”. “Algumas pessoas só merecem ser ignoradas”, acrescentou.

Apesar de estar por ora em liberdade, as condenações de Lula por corrupção e lavagem de dinheiro mantêm-se – se o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmar a condenação no caso do triplex de Guarujá, voltará a ficar atrás das grades, por exemplo. Para além disso, o ex-Presidente é réu em cinco outros processos decorrentes da Lava-Jato, o que significa que as malhas da justiça vão continuar a ocupar as suas energias. A defesa deposita fortes esperanças no pedido de suspeição, que põe em causa a imparcialidade de Moro, que vai ser avaliado pelo STF e pode anular as condenações. Esta seria a única via para Lula recuperar o direito a candidatar-se a cargos públicos.

Essa inibição não impede Lula de se comportar como um candidato de facto. Prometeu fazer uma declaração ao povo brasileiro até ao final do mês e anunciou que pretende percorrer o país. Será a campanha eleitoral que se viu impedido de fazer há um ano. “Eles não sabem o tesão [vontade] que eu tenho para lutar por este país”, garantiu. A sua primeira intervenção política teve também o objectivo de reafirmar que, aos 74 anos, Lula tem a energia que o momento requer e, sobretudo, quer contagiar a esquerda, paralisada desde a sua prisão.

Estratégia dupla

As palavras de Lula deixam antever uma acção dividida entre a política institucional e a mobilização popular. Conhecido como um político pragmático, o ex-Presidente irá pôr essas capacidades em teste para unir uma esquerda desavinda e perdida em lutas internas, e até tentar alcançar os sectores centristas. A imprensa brasileira diz que uma das suas prioridades é sentar-se à mesa com o ex-candidato presidencial Ciro Gomes. Um aperto de mãos entre ambos será um importante sinal, uma vez que Gomes tem sido um crítico feroz da captura do PT pelo “Lula livre”.

Ao seu lado, para além dos líderes e eleitos do PT – à excepção da ex-Presidente Dilma Rousseff que está na Argentina –, Lula tinha o ex-candidato presidencial, Guilherme Boulos, sindicalistas, dirigentes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e de movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra.

Lula deixou também um recado aos deputados “petistas” para serem “leões” no Congresso. Prevê-se uma oposição mais aguerrida em Brasília. As próximas eleições presidenciais, marcadas para 2022, foram apontadas como a meta final. “Se tivermos juízo e soubermos trabalhar direito, em 2022 a chamada esquerda de que o Bolsonaro tem tanto medo vai derrotar a ultra-direita”, afirmou.

Simultaneamente, Lula quer também as ruas mobilizadas contra o Governo e nem sequer se coibiu de dar o exemplo do Chile, mergulhado há várias semanas em violentos protestos respondidos com uma repressão impiedosa. “Temos que seguir o exemplo do povo do Chile. Não é resistir, é atacar, defender-se, estamos muito tranquilos”, observou.

A instabilidade no Chile tem estado presente nas declarações de Bolsonaro e do seu círculo mais próximo como alerta para que um cenário semelhante se possa repetir no Brasil.

Governo para “milicianos"

A unificar aquela que será a futura acção de Lula e da oposição está uma forte crítica ao Governo de Bolsonaro. Em 11 meses de governação, ainda não se tinha ouvido um discurso político tão hostil ao Executivo. Bolsonaro “foi eleito para governar para o povo brasileiro e não para os milicianos do Rio de Janeiro”, afirmou Lula, numa referência às ligações da família do Presidente às redes criminosas cariocas.

A certa altura, os ataques directos de Lula ao Presidente, que descreveu como “esse cidadão”, sucederam-se numa autêntica avalanche: “Ele encontrou um jeito de não trabalhar, foi fazer o serviço militar, resolveu criar uma confusão quando era tenente e aposentou-se muito jovem. Hoje, quer subir a idade da reforma”, afirmou. Acusou Bolsonaro de nunca ter feito “um discurso que prestasse” nos seus 27 anos como deputado. “Só sabia ofender as mulheres, os negros, o povo LGBT, os mais frágeis da sociedade.”

Lula soube também tocar nos pontos que lhe garantem uma admiração que ainda hoje parece inabalável entre os mais pobres. “Estou com mais coragem de lutar do que antes. Lutar para tentar recuperar o orgulho de ser brasileiro, para que as mulheres possam levar os filhos no supermercado e comprarem o suficiente, para que o trabalhador tenha carteira assinada, lutar para que o trabalhador possa ter o direito de ir ao cinema, teatro, ter carro, televisão, celular, ir a um restaurante e de poder reunir a família e fazer um churrasco ao fim-de-semana, que é o que nos deixa feliz.”

O primeiro dia de Lula livre resgatou também a polarização da campanha eleitoral de 2018. Enquanto São Bernardo do Campo recebia e aplaudia o seu líder, milhares de pessoas protestavam na Avenida Paulista, no centro de São Paulo, contra a decisão do STF que permitiu a libertação de Lula. As manifestações convocadas por grupos que apoiam a Lava-Jato estenderam-se a uma dezena de cidades, onde o verde e amarelo da bandeira são a regra, embora com uma adesão inferior a outras ocasiões.

Do lado do Governo, o silêncio de Bolsonaro foi quebrado logo de manhã. Sem referir o nome de Lula, o Presidente pediu aos seus apoiantes para não darem “munição ao canalha”, que disse estar “livre, mas cheio de culpa”.

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