Fórum do Futuro entre a velha e a nova escravatura

Auditórios esgotados e debates estimulantes, interrogando o passado para melhor perspectivar o presente e futuro. Tem sido assim o Fórum do Futuro no Porto, que encerra este sábado.

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A artista brasileira Vivian Caccuri à conversa com a artista visual e curadora Rita Castro Neves no Rivoli José Caldeira

O ano passado, o Fórum do Futuro, propôs-se interrogar o mundo de hoje a partir de elementos da Antiguidade Clássica. Este ano o ponto de partida, com o título Travessias, são os 500 anos da viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães e Juan Sebastián, repensando esse acontecimento e os seus múltiplos efeitos históricos, políticos e sociais, segundo um enquadramento onde se tem reflectido, em conversas, debates e performances, sobre o passado, o presente e o futuro de sistemas de domínio e libertação, ou sobre ancestrais e novas formas de colonização.

Nos primeiros dias destacaram-se as presenças da escritora Chimamanda Ngozi Adichie, abordando a negritude e o feminismo, ou da activista brasileira Sônia Guajajara, uma das mais conhecidas líderes indígenas actuais, que abordou os problemas à volta da degeneração dos territórios da Amazónia. Auditórios no Rivoli esgotados, assistências atentas e participativas, gerando um ambiente entusiasta, têm sido uma constante desde domingo, recebendo agentes de várias partes do mundo, de diferentes disciplinas, entre pensadores, artistas ou académicos, que responderam ao desafio do coordenador do programa, Guilherme Blanc, director para a Arte Contemporânea e Cinema da empresa municipal Ágora, e dos curadores Filipa Ramos, Gareth Evans e o artista britânico-ganês John Akomfrah.

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A escritora Christina Sharpe conversa com a socióloga Cristina Roldão

Em 2018 já alguns dos debates espelhavam uma necessidade de rever a nossa compreensão do mundo e reexaminar as narrativas que lhe estão subjacentes, dado que a história do Ocidente, tem esquecido os arquétipos de outras sociedades ou civilizações. Isso mesmo foi reflectido pelo artista e ensaísta Naeem Mohaiemen, nomeado em 2018 para o prémio Turner, que nasceu em Londres, filho de pais bengalis, tendo crescido no então recém-independente Bangladesh. Na sua alocução, esteve em destaque a linguagem (o bengali e o inglês), e a forma como pode gerar dinâmicas de apropriação, dominação ou subversão, conforme o contexto onde estejamos situados. 

E também de paradoxos. Como dizia alguém, ali se falava de hegemonias que têm sido postas em causa, mas todos comunicavam em inglês, sintoma de que há supremacias difíceis de questionar quando em causa estão valores que privilegiamos como a eficiência.

Da região do Sudão do Sul veio Fiesta Warinwa, que falou da urgência da preservação ambiental e da conservação da vida selvagem em África, para a noite de terça-feira ser preenchida pela conversa entre o actor e activista Danny Glover e John Akomfrah, com o primeiro a discorrer sobre o seu envolvimento nos movimentos independentistas coloniais, as políticas de reparação raciais — defendendo a criação de fundos para programas de desenvolvimento educativo — a crise ambiental e económica, e a necessidade de ser criada uma nova narrativa interseccional, capaz de agregar diferentes lutas e projectos emancipatórios.

Nas perguntas do público, à referência do nome Lula da Silva, de quem é amigo, a sala aplaudiu fortemente, sintoma da vigorosa presença de brasileiros, de quem Danny Glover se sente próximo, pelas muitas viagens ao país e pela mulher, que é natural do Rio.

Com o contexto político brasileiro em mente, a artista Vivian Caccuri, apresentou, na quarta-feira, uma curiosa palestra-performance (A Mão da Febre), inspirada pelo regresso ao Brasil da febre amarela, na mesma altura em que Jair Bolsonaro ascendeu ao poder. O desafio foi desenhar o percurso da doença, desde a sua introdução, através do mosquito trazido de África para o Brasil através dos navios negreiros europeus, para questionar estruturas coloniais, de ontem e de hoje. Afinal, a mesma questão introduzida mais tarde pela escritora Christina Sharpe, que partiu do ambiente de servidão das rotas transatlânticas dos escravos, para alcançar os navios que hoje zarpam de Tripoli, naufragando sobrelotados muitas vezes antes de atingirem a Europa, exemplos comuns de violência, de ausência de solidariedade, de escravatura. 

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A cantora Lafawndah na Casa da Música

À noite, na Casa da Música, existiu uma espécie de sincretismo de tudo o que se escutara e vira até aí, mas na forma de música. Por vezes, quando se reavalia o passado de forma crítica, existe quem pense que se trata de apagá-lo. Não necessariamente. Por vezes é uma questão de negociação, acrescentar camadas e leituras, enriquecer o que já existe com outros ângulos e pontos de vista. Pode haver subtracção. Mas também adição de novas hipóteses. A música ritualística de Lafawndah é assim. Parte de formas identificáveis da pop ou electrónica para se revelar sem limites.

Esta sexta e sábado o Fórum prossegue com a artista multidisciplinar Coco Fusco, o artista e realizador Arthur Jafa, a historiadora Clémentine Deliss ou o arquitecto David Adjaye.

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