O Processo de Kafka no PSD: por uma comissão eleitoral paritária nas próximas eleições diretas

Num mundo cada vez mais conectado e digital, o PSD parece um partido cada vez mais analógico.

O PSD foi sempre um partido que marcou uma postura reformista e evolução social em Portugal. Infelizmente nos dias de hoje parece optar por um posicionamento retrógrado e em contraciclo com o país e com o mundo.

A finalizar a segunda década deste século, as empresas, associações, partidos e agremiações fazem de tudo para tornar a vida das pessoas que querem ter como clientes, militantes ou simpatizantes mais simples e menos penosas nas interações burocráticas que têm de existir.

As empresas investem milhões tentando reduzir os pain points dos seus consumidores. Com aplicações móveis, com a contratação feita por via telefónica ou online, com uma análise constante e persistente sobre como tornar a vida dos seus clientes mais fáceis.

As associações, num mundo de elevada competitividade por causas, tentam mostrar transparência sobre o seu trabalho e com formas de quotização fáceis e ágeis.

Os partidos políticos, por todo o mundo, mas também em Portugal, abriram as suas votações além do universo da militância (como o PS), criando comissões eleitorais em que todas as candidaturas têm a possibilidade de fazer do processo eleitoral um ato que reforça a dinâmica interna do partido e dá força ao seu vencedor.

Ora, e como está o PSD em Portugal?

Para meu espanto, em completo contraciclo com o país, com as empresas, com os partidos e com o mundo. Num mundo cada vez mais conectado e digital, o PSD parece um partido cada vez mais analógico.

Eu quis pagar as minhas quotas. Já o fiz há mais de duas semanas. Mal sabia eu, tal como milhares de militantes por todo o país, que a minha militância, para ser reativada, tinha de passar por um processo burocrático digno de O Processo, de Frank Kafka.

Desde cópia do cartão do cidadão ao comprovativo de morada, documento de contrato com a operadora telefónica, prova de email pessoal, tudo tem servido para retrair os militantes de votarem.

Esta direção do PSD criou um clima de desconfiança em relação aos militantes. Há um processo que é criado contra os militantes com um único propósito: dificultar ao máximo a regularização eleitoral.

Agora a pergunta que devemos fazer é sobre o porquê deste flagelo burocrático, e além disso, a quem serve esta dificuldade toda?

Esta direção do PSD tem uma preocupação consigo própria inversamente proporcional à preocupação com os militantes. O que conta é o parecer em detrimento do ser. Esta direção do PSD diz-se empenhada em tornar as práticas partidárias mais transparentes, mas a realidade é que o processo de regularização de quotas em curso potencia o que de pior se praticava nos partidos há anos. E do qual a atual direção do PSD usufruiu para ser eleita...

Há algum tempo, alguns dos atuais dirigentes do PSD defendiam que as quotas deviam ser abolidas. Mas, hoje em dia, por estranhas manobras do destino —e tendo nas suas mãos o controlo da burocracia partidária — mudaram de opinião, e, pior, tornaram o processo de pagamento de quotas para participação eleitoral numa via- -sacra, em que o militante é considerado à partida suspeito de querer cometer uma fraude contra o PSD: pagar as suas quotas para votar.

A direção diz que este “processo” garante a eliminação de práticas menos transparentes. Eu contraponho dizendo que este “processo” não oferece garantia alguma de igualdade ou transparência. Senão vejamos:

— Quem garante que todos os processos individuais são tratados de forma igual?

— Quem garante que não há concelhias afetas à atual direção que têm a sorte de ter um crivo “menos rigoroso”?

— Quem garante que não há concelhias prejudicadas por serem hostis à atual direção?

— Quem garante que não há militantes individuais cujo “processo” não é, como no caso do de Josef K., no livro de Kakfa, sujeito a purgas pessoais, sem meios para saber o que se passa com os seus casos particulares?

A resposta é só uma: ninguém garante que este “processo” criado pela atual direção do PSD é sério. Ninguém garante que este “processo” oferece a todos tratamento igual, de norte a sul do país. Ninguém garante que a “censura” da secretaria-geral não exista (tal como ninguém pode garantir o contrário).

Para dar credibilidade ao PSD e a este processo eleitoral, a atual direção devia ter o rasgo de querer que todas a candidaturas fizessem parte do controlo deste processo eleitoral, criando uma comissão eleitoral, como há pelo mundo todo, e como há em Portugal no PS.

Com isto, a direção do PSD mostrava que queria verdadeiramente que estas eleições fossem transparentes e sérias. Com isto a direção do PSD mostrava ao país e aos militantes, que os “processos” não são apenas controlados por alguns acólitos leais a esta direção, mas que todas as candidaturas podem e devem ter uma atitude de auditoria sobre o processo eleitoral. Com isto, a direção do PSD responsabilizava também as restantes candidaturas de igual forma neste processo.

O líder do PSD disse que depois destas eleições a nova liderança deve ter o espaço e a paz necessários para se afirmar no partido e no país. Mas, para isso, tem de haver a garantia de que estas eleições são de facto eleições livres. Para dar mais força ao próximo líder do PSD, todas as candidaturas têm a obrigação de pedir uma comissão eleitoral, de participar nela e de ajudar a garantir um processo eleitoral à prova de bala.

Está nas mãos dos conselheiros nacionais proporem esta solução ou similares. Mas a direção do PSD tinha a obrigação de tomar a dianteira, depois de terem criado esta “via-sacra” da militância em forma de “processo. Se a criaram para dar seriedade ao ato eleitoral, só uma comissão eleitoral isenta e paritária pode garantir que as alterações feitas cumprem esse objetivo.

Não vislumbro razão nenhuma que impossibilite esta proposta. Não imagino razões que possam ser levantadas, por qualquer candidato, contra um instrumento de garantia de equidade, seriedade e transparência eleitoral. Mas quem se opuser a uma medida deste género terá de responder a uma pergunta simples: têm medo de quem e de quê?

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