Combater a extrema-direita tem (sempre, e primeiramente) de passar pelo combate à abstenção

É nos distritos com mais abstenção que o combate à extrema-direita deve ser travado, e é lá que, no futuro próximo, esse combate será ganho ou perdido.

A inevitável perda de memória colectiva que se vai demonstrando pelo mundo no que às acções da extrema-direita diz respeito não é ainda de tal forma avançada que a associação com o termo seja vista com bons olhos. No entanto, o que isto significa na prática é que apoiantes, simpatizantes e pensadores de extrema-direita se recusam a aceitar a sua identificação com o termo, negando o ‘extremismo’ das suas ideologias.

O que cada um decide considerar extremo ou não estará, com certeza, aberto a debate e variará consoante a opinião de cada um. Mas a definição de extrema-direita, como ela vem escrita nos livros, não sofre do mesmo relativismo. Podemos consultar uma definição rápida e neutra do conceito de ‘extrema-direita’ na Wikipédia que, neste caso, se baseia num livro de Oliver Woshinsky sobre o assunto. Esta fonte diz-nos que “a política de extrema-direita envolve frequentemente um foco na tradição, real ou imaginada, em oposição às políticas e costumes que são considerados como reflexo do modernismo”, e fala-nos também de um “desprezo ou um desdém pelo igualitarismo”. Em Portugal, só há um partido com estas características: o Chega.

No seu manifesto, o Chega caracteriza-se como “nacional, conservador, liberal e personalista”. O leitor ou a leitora que não se sinta convencido(a) que estas palavras caiam na definição de ‘extrema-direita’ pode consultar o programa político do Chega, onde as coisas ficarão mais claras: o foco na tradição está presente um pouco por todo o programa, desde a defesa das touradas e da caça, como a ênfase na história de Portugal, em particular na sua formação e na era dos descobrimentos. Já a guerra aberta à ‘ideologia de género’, também um pouco por todo o programa político do Chega, cai confortavelmente na categoria de “oposição às políticas e costumes”, reflexo do modernismo, que acima se mencionou. O “desprezo pelo igualitarismo”, esse, tem destaque privilegiado, sendo precisamente a primeira das bases políticas do Chega, a “da diferença”. O igualitarismo é, nas duas páginas que são apaixonadamente dedicadas a esta base política, apresentado como uma afronta aos direitos fundamentais de cada cidadão. Assim sendo, independentemente de o leitor ou a leitora concordar ou não com as ideologias do Chega, ou de as identificar ou não como extremas ou extremistas, a verdade é — segundo uma pura definição política — que o Chega é um partido de extrema-direita. Apresentados assim os factos, podemos dizer, com verdade, que com as recentes eleições legislativas de Outubro de 2019, Portugal passou a ter representação da extrema-direita no Parlamento, pela primeira vez desde o fim do regime salazarista, também ele de extrema-direita.

O caso de Portugal não está isolado (segue a tendência do resto do espaço europeu) e, da mesma forma, creio que a minha análise, embora se concentre no caso português, possa ser extrapolada e aplicada ao caso da Europa e do mundo. A parte menos original da tese aqui discutida é que o renascimento da extrema-direita a que agora assistimos está ligado ao crescente descontentamento com a classe e o sistema políticos (o próprio nome do partido de extrema-direita em Portugal a isso mesmo alude). O que talvez eu não veja tão claramente reconhecido — e que quero, portanto, ressaltar — é que o aumento da abstenção é um reflexo desse descontentamento e pode e deve ser interpretado não como desleixo ou desinteresse pelos direitos e deveres de cidadania, mas como um indicador de satisfação política, mais ainda do que o voto em branco ou nulo, tipicamente vistos como o voto-protesto. Referindo-me mais especificamente ao caso de Portugal, para o qual avaliei os dados disponíveis, o meu argumento é que é nos distritos com mais abstenção que o combate à extrema-direita deve ser travado, e é lá que, no futuro próximo, esse combate será ganho ou perdido.

Avaliemos então os dados que se nos apresentaram nas últimas eleições legislativas em Portugal, do passado Outubro. O Chega obteve a maior percentagem de votos (2,73 %) em Portalegre, e a menor percentagem no Porto (0,61 %). Desde logo achei curioso notar que Portalegre tenha sido o distrito com mais votos no Chega: um distrito sobre o qual, dias antes da eleição, se lia um artigo no PÚBLICO com o título “Uma terra fora da campanha: Ninguém quer saber de Portalegre. Acha isto normal?”. Convenci-me, por estas e por outras, de que são os distritos que se sentem abandonados, sem representação nem voz na esfera política, que não só mais se abstêm de votar mas também que mais tendência terão em votar no partido-protesto, na extrema-direita.

Armada apenas com as minhas convicções e uma mente aberta e objectiva, consultei a lista dos resultados das eleições e segui os números. Comecei por analisar os níveis da abstenção para cada distrito português em função da percentagem de votos no Chega (que, como já estabelecemos, correspondem à percentagem de votos na extrema-direita) nesse mesmo distrito. O gráfico resultante parece dividir-se em dois regimes distintos: o grupo de distritos, entre o Porto e os Açores, em que o voto no Chega variou entre 0,61% e 0,85 %, respectivamente, e os restantes, com percentagem de voto no Chega entre 0,9% (Coimbra) e 2,73% (Portalegre). No primeiro grupo, é evidente a tendência para uma maior abstenção à medida que sobe também a percentagem de votos no Chega, o que à primeira vista parece apoiar a tese de que distritos com maior abstenção tendem a votar mais na extrema-direita. No grupo Coimbra-Portalegre, no entanto, esta tendência não se observa, e os níveis de abstenção mantêm-se relativamente constantes independentemente da percentagem de voto no Chega. Avaliando o gráfico na sua totalidade, no entanto, seria difícil defender a relevância estatística de qualquer relação — os níveis de abstenção registados para cada distrito português nas eleições legislativas de 2019 aparentam ser relativamente independentes da respectiva percentagem de votos no Chega.

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Antes de desistir desta hipótese, ocorreu-me que a frustração com a classe e o sistema político não é um fenómeno que ocorra de forma isolada no tempo. Decidi, então, analisar não a abstenção registada nas legislativas de 2019 mas sim a diferença da abstenção nas legislativas de 2015 e de 2019, avaliando assim uma variação na abstenção, ao invés dos seus níveis absolutos de 2019. Aqui, sim, a relação torna-se mais clara: é nos distritos onde a abstenção mais aumentou desde 2015 que se registam as mais elevadas percentagens de voto no Chega. Assim sendo, neste grupo de distritos — Portalegre, Évora, Faro, Beja, Santarém, Lisboa, Setúbal, Leiria, Guarda, Castelo Branco, Viseu e Coimbra —, não só a abstenção aumentou significativamente mas também mais votantes deram o seu voto ao Chega. É importante, no entanto, ressalvar que é impossível com estes dados dizer se os votantes do Chega em 2019 se abstiveram ou votaram noutros partidos em 2015, e esse tipo de análise é dificultado pela novidade do partido. Isto é, pouco pode ser discernido a este ponto acerca da capacidade do Chega de atrair votantes e/ou não-votantes — mas é aparente que o aumento da abstenção é, por enquanto, mais significativo que o movimento para o voto no Chega. Mais ainda, é interessante notar que o tipo de relação observado entre a abstenção e o voto no Chega, mesmo quando a diferença desde 2015 é tida em conta, não se verifica quando se avaliam os votos brancos e/ou nulos: independentemente da percentagem de votos no Chega, a percentagem de votos brancos/nulos mantém-se relativamente constante e perto da média nacional.

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Retiro desta análise algumas conclusões interessantes. Primeiramente, fica, para mim, claro que a ideia de que a abstenção é um reflexo de um povo desinteressado, negligente, e de que é apenas o voto branco e/ou nulo que conta como voto-protesto, simplesmente não é válida. Este irresponsável deleite de atirarmos a culpa da abstenção na direcção das pessoas, que levianamente rotulamos de preguiçosas, é uma cobardia. E é um erro que a extrema-direita saberá aproveitar, tornando os potenciais não-votantes em votantes na extrema-direita. Combater a extrema-direita tem, portanto, obrigatoriamente de passar por combater a abstenção e chegar às pessoas com soluções reais antes que a mensagem oca da extrema-direita lhes ofereça a falsa salvação.

Trazer a política de volta às pessoas tem de ser um esforço real e genuíno: um programa sério para fazer política com e para todos os cidadãos. Conquanto não se possa de todo dizer que todos os casos de abstenção tenham origem num sentimento de afastamento da classe política, lembremos que o distrito que simultaneamente mais votou no Chega e onde a abstenção mais aumentou desde 2015 — Portalegre — é o mesmo distrito onde a campanha “não chegou”, e onde as pessoas sentem que “ninguém quer saber” do seu distrito. Estas pessoas precisam ser ouvidas, os seus problemas considerados, as suas queixas atendidas. Estas pessoas precisam de ser representadas no Parlamento. Notemos, mais ainda, que dos doze distritos em que a abstenção mais subiu e onde se registou a maior percentagem de votos no Chega, seis são da região Centro do país, e outros três do Alentejo. É sabido que estas regiões do país — as do interior — são frequentemente esquecidas. A pouco tempo de eleições, o primeiro-ministro António Costa soube reconhecer isso mesmo, dizendo que pretendia “fazer o que ainda não foi feito” no interior do país.

Mas Lisboa tem de se lembrar do interior não só nas semanas e meses antes de uma eleição, mas a cada passo dado pelo país. É no interior que as pessoas se sentem abandonadas, fora da política, sem representação, sem voz. É no interior que a extrema-direita alastra. É no interior — nos distritos com maior abstenção — que se trava o combate à extrema-direita. Trazendo a política às pessoas e as pessoas de volta à política. Nenhum partido pode dizer-se seriamente dedicado ao país e, em particular, dedicado ao combate à extrema-direita, se não tiver um plano concreto de re-democratização das comunidades esquecidas, que incluem não só as minorias e grupos oprimidos, mas incluem também as gentes do interior do país. O combate à extrema-direita tem (sempre, e primeiramente) de passar por dar voz a quem está cansado de não ser ouvido. Não esqueçamos nunca qual foi (e qual será) o preço a pagar pela indiferença ou tardia consciência.

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