Quem sempre usou sapatos, não vai longe descalço

Ser despedida aos 44 anos não vai ser pêra doce. Quem é que me vai dar trabalho? O mais certo é ir direitinha para uma empresa de limpezas como a minha mãe, embora o meu problema na coluna seja inconciliável com o aspirador e com toda a “ménage” de cócoras.

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Mag Rodrigues

Não escolhi trabalhar aqui. Somos mais vezes escolhidos — como dizem os franceses, par hasard — do que temos a possibilidade de escolha. A minha mãe disse-me isto muitas vezes. Durante mais de 30 anos, limpou casas de banho públicas nas periferias de Paris. Nunca se queixou de andar a chafurdar na merda dos estrangeiros. Quando chegava a casa, tomava um banho que enchia as paredes de vapor e turvava completamente o pequeno espelho por cima do lavatório. Eu gostava de lá entrar, assim que a via enrolada no toalhão turco a caminho do quarto, e escrever no espelho o meu nome, embora soubesse que a mãe não gostava nada disso. Nunca achou graça, dizia que eu não sabia o trabalhão que dava limpar espelhos.

A mãe sacrificou-se durante décadas, não queria aquela vida para mim. Quis que eu estudasse e eu desisti da escola antes de terminar o quinto ano. Não gostava dos professores nem das aulas. Acreditava que não era preciso ser-se doutor para se ir longe. A verdade é que as coisas vão acontecendo sem que tenhamos grande mão nisso; comigo acontece assim, par hasard, cá está. Voltámos para Portugal porque o meu pai adoeceu de repente, de um dia para o outro deixou de saber o caminho para a carpintaria onde trabalhou perto de 30 anos. Perdia-se. E lá ia a mãe, depois de passar mais de oito horas a limpar toilettes atascadas em trampa, e ainda sem ter tomado o seu banho “imaculador”, pelas ruas da cidade à procura do pai. O desespero que devia sentir, hoje sei. Na altura não me preocupava com os problemas familiares, estava demasiado concentrada em viver os dramas da adolescência e em sobreviver ao primeiro desgosto amoroso.

Nunca pensei que a situação do pai fosse tão grave. Acabámos por voltar a Santarém. Tínhamos bastante dinheiro, que os meus pais conseguiram juntar à custa de sacrifícios. O pai deixou de trabalhar e a mãe ainda quis tentar emprego numa empresa de limpezas no Cartaxo. Não a quiseram, disseram-lhe que tinha experiência a mais. Que aldrabice tão humilhante, pobre mãe, tingida de branco por tantas ralações.

Trabalho na fábrica de refrigerantes em Santarém desde essa altura, há 28 anos. Correm rumores de que a fábrica vai fechar. Eu e as 149 pessoas que aqui trabalham estamos muito preocupadas com o boato que, a ser verdade, põe em risco o sustento de 150 famílias. Hoje, eu, a Lurdes e a João não fomos comer à cantina. Ficámos nos vestiários, queríamos falar à vontade enquanto comíamos os restos do jantar de ontem, directamente dos tupperwares. No meu caso, umas pataniscas de bacalhau com arroz. A bifana da João cheirava tão bem que ainda me passou pela cabeça pedir-lhe uma troca, mas calei-me. Afinal, estávamos ali para falar de assuntos sérios. Ser despedida aos 44 anos não vai ser pêra doce. Quem é que me vai dar trabalho? O mais certo é ir direitinha para uma empresa de limpezas como a minha mãe, embora o meu problema na coluna seja inconciliável com o aspirador e com toda a ménage de cócoras. Bom, ali estávamos nos vestiários; mais do que arranjar soluções, porque não as tínhamos, queríamos partilhar a nossa angústia.

Depois de fecharem a fábrica vamos parar ao meio da rua. Não tenho filhos, como a João e a Lurdes, mas tenho os meus pais. Ambos incapacitados. Sou eu que cuido deles. Já há muito que gastámos em médicos e tratamentos as poupanças de uma vida em França. Tirando o meu ordenado na fábrica e a parca ajuda da segurança social, não temos nada nem ninguém a quem recorrer. Não sei como vão ser os próximos tempos. Há mais de cinco anos que não compro um par de sapatos. O meu pai sempre disse que os sapatos dizem muito sobre uma pessoa. E os meus estão velhos e gastos e fora de moda. Tudo o que ganho é para ajudar os meus velhotes a terem uma vida com um mínimo de dignidade. Felizmente a casa é nossa ou ainda íamos parar debaixo da ponte de Santarém. A João e a Lurdes estão a falar há imenso tempo, não ouvi nada do que disseram. Estou demasiado atolada nas minhas merdas. Estamos todas.

Assim que os meus pais morrerem vou-me abaixo. Não tenho dúvidas. Sozinha e, na melhor das hipóteses, a limpar retretes nalgum centro comercial, a ter a vida que a minha mãe não queria para mim. Não me vou aguentar. O meu pai costumava dizer “Quem sempre usou sapatos, não vai longe descalço”. Já desisti de ir longe há muito tempo — calçada ou descalça, tanto faz. Vamos ver se tenho mão nisso.

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