Urgências portuguesas em colapso? Novas perspetivas

A enfermagem pode dar um contributo decisivo na consecução do objetivo de tornar o acesso aos cuidados de saúde universais e mais equitativos.

As urgências portuguesas estão numa encruzilhada. A sobreutilização destes serviços deve provocar uma séria reflexão, tanto nos decisores políticos, como nos profissionais de saúde e sociedade em geral.

Se é verdade que as expectativas do cidadão estão orientadas para uma utilização dos serviços de saúde por via das urgências, o incentivo político concorre na mesma direcção. A pouca aposta nos cuidados de saúde primários, em políticas de proximidade dos cuidados de saúde, conjugadas com o incipiente investimento em políticas ativas de promoção da saúde e literacia em saúde, produzem, como consequência óbvia, a sobrelotação dos serviços de urgência.

Esta realidade cria um círculo vicioso difícil de quebrar. A consequente diminuição da qualidade dos serviços com o aumento da insatisfação do cidadão tem como resultado imediato o aumento do paradigma hospitalcêntrico, desviando recursos dos cuidados de saúde primários para os cuidados hospitalares.

Por outro lado, temos a questão da organização dos meios disponíveis. Trata-se de uma realidade observável nas áreas metropolitanas, em que a dispersão dos recursos existentes torna a rede assistencial demasiado fina, ineficaz e com risco de suspensão de atividade, como infelizmente observado no caso das urgências do Hospital Garcia d’Orta.

São várias as soluções apresentadas que procuram resolver esta situação crónica. Têm como denominador comum o facto de não romperem com o paradigma vigente. No entanto, existe um recurso testado e implementado com sucesso nos países anglo-saxónicos, que será sem dúvida a solução que Portugal precisa, sendo perfeitamente aplicável caso haja vontade política: a redefinição dos papéis profissionais na área da saúde, com o aumento de competências do enfermeiro especialista.

O enfermeiro especialista é aquele a quem se reconhece competência científica, técnica e humana para prestar cuidados diferenciados ao longo de todo o ciclo de vida. É o profissional de saúde que possui a capacidade de avaliar e intervir em situações de variada e elevada complexidade, em todos os níveis dos cuidados de saúde.

A redefinição dos papéis profissionais evidencia-se pela elevada aceitabilidade dos utentes, tanto em contexto de urgência como nos cuidados de saúde primários. As mais recentes revisões da literatura indicam que os resultados em saúde proporcionados com o aumento de competências do enfermeiro especialista, a trabalhar em parceria com a equipa médica, são idênticos aos resultados obtidos apenas pelos médicos. Assim, seria possível obter uma solução segura, aceite pelos utentes, que otimizaria os recursos disponíveis e com uma melhoria do acesso aos cuidados de saúde por parte do cidadão.

A desvalorização das carreiras da saúde, assim como o impacto que as aberturas dos centros hospitalares privados tiveram nas dinâmicas de disponibilidade dos médicos, tiveram como resultado a carência objetiva e a diminuição da acessibilidade aos cuidados de saúde. No caso da margem sul, o cenário até há pouco tempo impensável do encerramento da urgência pediátrica retrocedeu a disponibilidade e a qualidade da oferta de cuidados de saúde de volta aos anos 80 do século passado!

A enfermagem pode dar um contributo decisivo na consecução do objetivo de tornar o acesso aos cuidados de saúde universais e mais equitativos. É importante discutir sem dogmas e preconceitos nem exacerbar corporativismos que em nada auxiliam na busca de soluções. Os próprios calendários eleitorais parecem querer colaborar neste objetivo. Depois das legislativas de outubro, os enfermeiros votarão em novos corpos sociais para a Ordem dos Enfermeiros no princípio de novembro, tal como os médicos em janeiro de 2020. Que o resultado sejam novos dirigentes, capazes de construir pontes e parcerias duradouras, pela saúde de todos os portugueses.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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