Cantar o luto com alegria — da Saxónia ao Cabo Espichel

Apresentar Giorgi a par de Perez, compositores que se cruzaram em Lisboa em meados do século XVIII, teve a vantagem de contrastar o stile antico da escola romana do primeiro quartel do século, muito devedora do contraponto imitativo desenvolvido no Renascimento, com a escola napolitana que dominou a música vocal daí em diante

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García Alarcón dirigiu o coro Gulbenkian DR

Num programa acertadamente apontado para o dia da comemoração dos Fiéis Defuntos (2 Nov.), o maestro Leonardo García Alarcón juntou o Tombeau em memória da princesa Christiane de Brandebburg-Bayreuth, composto em 1727 por J. S. Bach (1685-1750) — Trauer-Ode, BWV 198 —, ao Mattutino de’ Morti do compositor napolitano (mas lisboeta por adopção) David (ou Davide) Perez (1711-1778), obra escrita em 1770 para o santuário mariano do Cabo Espichel e publicada em Londres quatro anos depois. Dois ofertórios de Giovanni Giorgi (c. 1700 - 1762), que foi compositor da Sé Patriarcal em Lisboa entre 1725 e 1755, foram ainda inseridos antes do primeiro e do terceiro nocturnos das Matinas de Perez.

A obra de Perez, tal como nos foi apresentada, consistiu em nove responsórios (agrupados por nocturnos, três a três) da hora de Matinas do Ofício de Defuntos; esta hora do Ofício Divino, cantada antes do raiar do sol, incluía, na antiga prática litúrgica, muitos outros componentes, textuais e musicais, e durava três horas. Um responsório, no Ofício, é normalmente formado por um responso (coral) e por um versículo (solístico), seguido pela retoma da parte final do responso. Ora, em três casos, o responso não foi parcialmente retomado após o versículo. Aquilo a que assistimos foi, portanto, uma versão bastante abreviada, e artisticamente enviesada, de umas Matinas; opção perfeitamente legítima que nos permite, nas condições de hoje, apreciar o esforço composicional que foi para aí canalizado, neste caso com patrocínio real (num dos anos em que o Círio do Cabo Espichel coube à freguesia da Ajuda). Também a inserção no programa das peças de Giorgi para 4 vozes e órgão, que pertencem ao universo da Missa, tem justificação puramente artística. A imaginação de García Alarcón permitiu-se ainda juntar às forças vocais, com belo efeito, trombones (em Improperium expectavit) ou contrabaixos (em Dextera Domini).

Apresentar Giorgi a par de Perez, compositores que se cruzaram em Lisboa em meados do século XVIII, teve a vantagem de contrastar o stile antico da escola romana do primeiro quartel do século, muito devedora do contraponto imitativo desenvolvido no Renascimento, com a escola napolitana que dominou a música vocal daí em diante. Giorgi mostra-se, nestes ofertórios, como um polifonista exímio, capaz de gerar onda sobre onda de beleza harmónica.

A obra de Perez, para cinco cantores solistas, coro a cinco vozes e orquestra, tem, em contrapartida, uma variedade estonteante na cor, na textura e na expressão, sempre relacionada com o seccionamento e o sentido do texto; a orquestração aqui adoptada (pois esta era variável segundo as circunstâncias) revelou-se idiomática e rica. O que manteve os ouvidos colados à actuação foi não só esta variedade, mas também o imparável impulso rítmico, alimentado com alegria pelo compositor, mesmo com textos que facilmente podem resvalar para o negrume e a soturnidade. No entanto, a sensibilidade de Perez para a emoção mais profunda foi demonstrada à saciedade pela secção Miserere mei, Deus, do quinto responsório, extraordinária no seu poder retórico e na forma como combina solistas e coro.

O Coro Gulbenkian, bem apoiado pela orquestra, correspondeu na perfeição à direcção de García Alarcón, à vez enfática e redonda, com intenção bem marcada e sem perdas de tempo nas muitas transições; numa ocasião, no Mattutino, o baixo Tiago Batista avançou para a boca de cena para uma intervenção bem sucedida, em duo com o baixo Grigory Shkarupa. Este, com afinação insegura em Bach, fez um belíssimo papel na obra de Perez. Os restantes solistas foram a soprano Inês Lopes (em Bach, convincente), Cecília Rodrigues e Mariana Flores (em Perez), o contratenor Christopher Lowrey e o tenor Fabio Trümpy. A portuguesa Cecília Rodrigues e a argentina Mariana Flores, embora com estilos algo diferentes — mais discreta e homogénea a primeira, mais gesticulante e modulante a segunda — destacaram-se ambas pela limpidez vocal e fundiram exemplarmente nos duos. O norte-americano Christopher Lowrey exibiu a sua grande competência técnica e artística, dando porém a sensação de uma emissão vocal demasiado construída. Já o suíço Fabio Trümpy agradou a todos os níveis, contribuindo decisivamente para o sucesso deste concerto, muito aplaudido. 

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