Tensão, desculpas e envelopes terríveis. Um dia com uma fiscal da EMEL

Dina Costa tem uma das profissões mais odiadas em Lisboa: é fiscal da EMEL. Todos os dias faz mais de dez quilómetros a pé. Os insultos e agressões (até com pedras da calçada) já foram o prato do dia, mas “hoje são cada vez menos frequentes”.

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Dina Costa trabalha na EMEL há 13 anos Francisco Romão Pereira

“Bom dia, não pode estacionar aqui.” Foi esta uma das primeiras frases que Dina Costa, fiscal da EMEL há 13 anos, disse quando iniciou o turno — e uma das mais repetidas nesta manhã em que o PÚBLICO a acompanhou. É dirigida ao condutor de uma carrinha de caixa aberta parada no cimo da rua Lucinda do Carmo com material para uma obra de um prédio próximo, contou-lhe o condutor. Aceitou a justificação: “Nestas situações também é preciso ter bom senso”, diz uns metros mais à frente. “Não há zonas de cargas e descargas em todo o lado.”

À sua frente, ergue-se a malha intrincada de ruas do Alto do Pina. Vai calcorreá-las todas até ao final do turno, que acaba às 15h. Por esta altura, o relógio marca as 9h30, mas o dia de trabalho de Dina Costa não começou agora. Já teve de fazer todo o percurso entre o Areeiro e o Campo Grande, onde fica a sede da EMEL. É lá que se farda e recolhe o equipamento que a irá acompanhar ao longo do dia: um telemóvel, uma impressora e um punhado de envelopes coloridos. Vermelhos para as multas por falta de pagamento ou mau estacionamento; amarelos para quem excede o tempo que já pagou na máquina.

A maioria dos funcionários da EMEL chega de transportes públicos ao local onde vai trabalhar naquele dia. Não é sempre o mesmo sítio, “até para não ser repetitivo”, conta-nos Dina. Há outras equipas que andam de carrinha — como os bloqueadores — e até de mota. Mas neste dia, Dina, que trabalha a pé, escolhe o metro.

Está na Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa há mais de dez anos. É um dos 178 operacionais da empresa — 137 homens e 41 mulheres, com idades entre os 20 e os 58 anos. Não respondeu a uma vocação: o namorado já trabalhava na empresa e Dina, recém-chegada de Santarém, escolheu a EMEL “porque já sabia como era a nível interno”. Como vinha “para uma cidade que não conhecia”, acabou por ser mais confortável escolher um sítio onde já sabia como se trabalhava.

“Mais alguns que vão pagar”

Actualmente já conhece a cidade em pormenor e as suas tarefas são cumpridas de forma metódica. Assim que chega à rua Actriz Virgínia, começa por ligar à equipa de avarias para perceber se todas as máquinas de pagamento estão a funcionar. Mas não descura a verificação de todas elas: de forma quase automática, aproxima-se de uma e insere uma moeda de cinco cêntimos. Assim que o ecrã se ilumina, cancela a operação. Repete estes movimentos dezenas de vezes ao longo das horas em que o PÚBLICO a acompanhou.

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Conta que primeiro gosta de mostrar que chegou ao bairro e só depois começa a olhar para os pára-brisas à procura de talões de pagamento ou dísticos de residente da zona. Resulta. É uma rua com algum comércio e vê-se gente a sair de cabeleireiros e mercearias, algumas aflitas. “Já venho!”, grita uma mulher para dentro de um talho. “Mais uns quantos que vão pagar”, brinca Dina.

Estamos numa zona de estacionamento verde, num bairro maioritariamente residencial. É “uma zona fiscalizada há muitos anos e por isso há a consciência de que tem de se pagar”. “O mau estacionamento aqui é pontual”, refere.

Não é dos bairros mais fáceis, mas também não é dos mais difíceis, diz. “Há zonas que são mais rotativas [mais usadas por pessoas que vão trabalhar ou comércio, por exemplo] e há zonas que são mais residenciais. E isso faz toda a diferença”, explica. “Quando são mais residenciais acabamos por nos dar mais com as pessoas... As pessoas idosas que estão sozinhas conseguem parar um bocadinho para conversar connosco. Se for uma zona como a Avenida da Liberdade ou a Baixa já é mais rotativo. E as pessoas também estão com um ritmo muito mais acelerado.”

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Na rua “fica-se à mercê e as pessoas criticam mais”

Naquela manhã, não houve qualquer incidente. Nenhuma das pessoas que abordou Dina lhe levantou sequer a voz. Nem todos os dias são assim e Dina tem consciência de que o seu trabalho é um dos mais odiados por quem anda de carro em Lisboa — excepção feita “aos residentes”, que mostram gostar dos fiscais, avalia.

Notou-o assim que entrou para a profissão, até porque começou na função de bloqueadora. “Foi um choque”, lembra, mas reconhece que aquela função foi uma escola para “aprender a gerir conflitos” como nunca antes. É dos tempos de bloqueadora que conta algumas das histórias menos felizes.

“Eu e o meu colega estávamos ao pé de um carro que tínhamos acabado de desbloquear e um senhor começou a injuriar-nos, pegou nas pedras da calçada e começou a mandar-nos. Não tinha nada a ver com a situação da viatura, era uma pessoa que estava a passar e naquele dia lembrou-se de fazer aquilo”, recorda.

Também foi quando estava na equipa de bloqueadores que um colega foi agredido com murros à sua frente, apenas porque foi avisar um condutor de que tinha o carro mal estacionado. Quando se está sozinho “fica-se à mercê, com a agravante de que na rua as pessoas criticam mais”.

“Já houve mais relatos de violência”, aponta Dina. Os casos — que já eram esporádicos —  são cada vez menos. De acordo com os dados fornecidos pela EMEL ao PÚBLICO, em 2019 foram registados seis episódios de violência; em 2018 foram oito. “São situações excepcionais, mas mesmo que acontecesse apenas uma vez no ano seria grave e inaceitável”, afirma fonte oficial da empresa. Por isso é que a EMEL tem um sistema articulado para que estas queixas sejam imediatamente tratadas: vai da presença da polícia no momento do incidente à formalização da queixa junto das autoridades competentes com a ajuda do departamento jurídico. 

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Actualmente não se trata tanto de agressões físicas, mas verbais. “Até pode acontecer estarmos só a passar e alguém no carro lembra-se de dizer alguma coisa”, conta Dina. “Já não ligo muito, quando entrei ligava. Até porque quando chegamos não estamos habituados a lidar com isto no dia-a-dia”.

É por causa de situações como estas que uma parte importante da selecção dos candidatos a este trabalho é a capacidade de gestão de conflitos — que também é uma componente importante na formação. E também é por isso que a empresa tem, “há pouco mais de um ano” um psicólogo. “Com este serviço, a EMEL apoia qualquer colaborador a ultrapassar uma situação que o esteja a desestabilizar ao nível psicológico e emocional”, explica a empresa. Há também o apoio de um médico, que pode ser chamado quando é preciso.

É um trabalho exigente: para além de ser duro em termos psicológicos, também o é em termos físicos. Todos os dias, Dina anda mais de dez quilómetros. Em média, o salário de um fiscal cifra-se “entre 700 a 900 euros” por mês, diz Dina.

“Estou multado?”

Já a manhã ia quase a meio quando Dina multou o primeiro carro. Ei-lo: é um Renault cinzento, com vários talões no tablier — nenhum para aquela quinta-feira. Dina verifica a aplicação da EMEL (ePark): também não pagou por aí. Ficou sinalizado. Antes de emitir a multa (30 euros), a fiscal vai ainda ver o resto dos carros daquela rua, para “garantir que não foi mesmo [um estacionamento] só por cinco minutos”.

Vários comerciantes da zona vêm à porta dizer-lhe “bom dia”, mas este é um trabalho solitário. “Normalmente” só fala “com as pessoas da rua” para, por exemplo, avisar alguns condutores de que não podem estar ali parados. Neste dia, há também quem aproveite para tirar dúvidas: “Como posso ter dístico de residente?”, “como posso contestar esta multa?”.

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Num dos cruzamentos está um carro parado em cima de duas passadeiras. O condutor, que já estava a descer a rua, apressa o passo ao ver a fiscal: “Desculpe lá, foi só um minuto”. “Sabia que podia ter ficado sem dois pontos na carta de condução?”, alerta Dina. “Estou multado?”, pergunta o condutor, a medo. “Não, mas tenha atenção.” Diz que uma das vertentes deste trabalho passa por adoptar uma postura mais “pedagógica” e tentar alertar os condutores para este tipo de infracções.

Gosta do que faz. No final do dia, despe a farda e vai para casa satisfeita. “Gosto de sentir que a cidade está organizada, que o estacionamento está em ordem.”

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