Como é possível?

Quem consegue escapar à morte encontra na Europa a negação da vida. Os cúmplices, sabemos agora, fazem maioria no Parlamento Europeu.

O Parlamento Europeu rejeitou o apoio a missões de salvamento e resgate no Mar Mediterrâneo. A desumanidade cantou vitória com gritos da extrema direita que ganhou a maioria que se julgava impossível. A Europa já não era sinónimo de solidariedade, mas agora despiu-se de dignidade. Os valores da humanidade agonizam com o avanço do medo e do ódio.

O Mediterrâneo é um gigantesco cadafalso que levou milhares de vidas nos últimos anos. Quem o enfrenta, em pequenos barcos e probabilidades reduzidas de sucesso, foge da guerra, dos centros de detenção da Líbia, da tortura e da escravidão, da violência sexual. Foge da morte, que nunca deixa de estar à espreita, tentando a sorte na lotaria cruel da passagem marítima.

Quem consegue escapar à morte, encontra na Europa a negação da vida. A perseguição de quem se recusa a deixar outros a morrer no mar, os campos de detenção com barreiras para manter dentro as pessoas e fora os direitos humanos. Ou a celebração da falta de solidariedade internacional que desconsidera a cooperação entre os países para receber quem nos procura.

Julgava impossível assistir a essa demonstração de imensa falta de empatia com quem tanto sofre, essa ausência de humanidade para com homens e mulheres como nós ou para com crianças como as nossas. Mas esse é um dos problemas, não é? O valor da vida ou a desvalorização dela se vier do lado de lá do mar. “Os de lá”, “aqueles”, “os outros”, essa divisão que regista a diferença, que separa que merece de quem se desmerece. A defesa perante uma “invasão” que só existe em cabeças fechadas e mentes tacanhas e nos deixa cada vez mais pobres porque cada vez menos humanos.

Que esse caminho tenha chegado a maioria no Parlamento Europeu não é tanto a marca da extrema direita, mas de quem lhe escancara as portas ao ódio e lhe dá a mão ao medo. Nesses votos há os de eurodeputados portugueses, como Nuno Melo e Álvaro Amaro, que ajudaram a esse resultado cruel. Assim se percebe porque há meses o centrista naturalizava o Vox e as suas posições xenófobas, nesse saco a farinha não é muito díspar.

O que motivou o voto contra destes eurodeputados é a diferença que consideram fundamental entre um “migrante económico” e um “refugiado”. Como se não existissem direitos humanos e se pudesse negar o salvamento a quem se afoga por ser um “migrante económico”. É isto a Democracia Cristã? Não há desculpas.

A defesa destes eurodeputados foi tímida, porque a posição é simplesmente indefensável, ainda mais quando comparada com os restantes colegas de partido que recusaram alinhar com a extrema direita. Mas uma das vozes que procurou explicar o inexplicável foi a de Adolfo Mesquita Nunes aos microfones da TSF.

O argumento principal, segundo Mesquita Nunes, é que há “divergências na forma como se resolvem os problemas: o tratamento a dar às Organizações Não Governamentais (ONGs); o que fazer com as redes de tráfico humano e a distinção entre refugiados e imigrantes”. É exatamente isso que está em causa, mas a defesa é uma confissão: são os mesmíssimos argumentos da extrema direita para perseguir as ONGs, criminalizar a ação humanitária de salvamento de migrantes e impedir os navios com migrantes a bordo de atracar nos portos europeus. A razão para que continue a persistir a imensa rede de tráfico humano é o desespero de quem encontra muros quando devia encontrar respostas.

A divergência existe e é de fundo. É sobre como nos definimos enquanto humanidade, sobre o papel que temos perante o sofrimento de outros. E como nos comportamos nos momentos limite em que temos de escolher se queremos ou não salvar as vidas de quem nos estende a mão.

A ativista Anabel Montes, da tripulação do navio Open Arms – o navio com 134 migrantes que o antigo ministro italiano Matteo Salvini impediu durante semanas de atracar no porto de Lampedusa –, resumiu o que sente quem escolhe salvar vidas no Mediterrâneo: prefere ser presa a ser cúmplice. Os cúmplices, sabemos agora, fazem maioria no Parlamento Europeu.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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