A minha Glória

Para mim, com todas as tuas qualidades e defeitos – e eram vários, como sabes (também não ignoras que detesto a hipocrisia de que quando se morre toda a gente era perfeita) –, és a minha santa. A minha Glória. A minha “velhota”, termo que abominavas e que te arrancava certeiros impropérios.

Apetece-me falar de ti e para ti. Do modo como te sinto presente de cada vez que me sento no sofá bege da sala, quando pouso o relógio em cima da mesinha de canto que me deste e, sobretudo, quando dou comigo a pensar em ti, a fazer-te perguntas, a revelar-te segredos e fragilidades. Foste operária fabril por 48 anos, como dizias com orgulho, ostentando o teu cartão do “sendicato”. Não distinguias uma letra e muitas vezes percebias as notícias da televisão totalmente ao contrário. Mas perguntavas-me sempre que tinhas dúvidas sobre o que se estava a passar no nosso país e no mundo. Esse espírito curioso e perscrutador era uma das tuas fontes de vida.

Contei-te várias inclinações partidárias, pedias opinião, mas na altura do voto apenas me solicitavas que te identificasse o símbolo do partido que elegeras. Deitavas-te no chão da sala de costura da tua filha, por te queixares das costas. Aliás, cada dia inventavas uma doença nova e o cardápio do simpósio terapêutico ainda hoje está por descobrir maleitas que tu já antevias. Foste uma espécie de visionária nessa matéria, uma espécie de Hipócrates “avant la lettre”. Quando estudava e te pedia para me preparares o lanche, perguntavas-me – e bem – se não tinha mãozinhas, mas lá ias para a cozinha com a pergunta sacramental “O mesmo do costume?”, e eu respondia que sim, ao que ripostavas “Sempre pão com manteiga e ‘Coco-Cola!’”. Por muito que te dissesse que era “Coca-Cola”, mandavas-me calar e eu obedecia, pois tiravas-me sempre um sorriso.

Adoeceste verdadeiramente e durante cinco anos foste uma sombra de ti mesma, sem sabermos ao certo de que te apercebias ou não. Mesmo assim, quando ia dar-te um beijo ou ajudar a tratar de ti, falava-te como se me compreendesses e os teus olhos expressivos ainda hoje gravados na minha retina davam-me a certeza que estavas a acompanhar tudo. Mesmo que estivesses lá longe, numa dimensão onde não há tempo e espaço, numa espécie de suspensão da realidade. Chorei e ri ao teu lado, pedia-te conselhos e os teus silêncios, para o final, eram sempre eloquentes.

Continuo a falar contigo e sabes que não te vou ver ao cemitério por lá não estares. Continuas comigo e connosco e não tenho paciência para convenções sociais em que o Dia de Todos os Santos se transforma no dos fiéis defuntos, por práticas razões de o primeiro ser feriado. Para mim, com todas as tuas qualidades e defeitos – e eram vários, como sabes (também não ignoras que detesto a hipocrisia de que quando se morre toda a gente era perfeita) –, és a minha santa. A minha Glória. A minha “velhota”, termo que abominavas e que te arrancava certeiros impropérios.

Às vezes sinto mesmo a tua presença física e não preciso de ir a nenhum bruxo ou a um psiquiatra por isso. É a boa presença de quem nos amou e ama incondicionalmente, que nos ensinou a respeitar a honradez e o trabalho, a não fazer quaisquer distinções, a manter um “coração mole”, como dizias.

Olha, não sei o motivo real para te escrever assim em público, pois as efemérides são diárias entre nós. Gosto de imaginar que alguém te está a ler o que escrevo e que estás a olhar com aquelas janelas da alma embevecidas com que me fitavas sempre que te lia algo que escrevera. No final, perguntava-te o que acharas e, invariavelmente, retorquias “Filho, está lindo, mesmo que não tenha percebido muita coisa…”. É isso, avó, a linguagem dos afectos não se percebe, ou melhor, compreende-se na pele que ambos partilhamos.

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