Saias, crimes e a diabolização do “outro”

A ciência vai-nos provando, com clareza, que nascemos todos humanos, mas o preconceito é, na verdade, uma construção social meramente opcional.

A reacção de desconfiança, rejeição e medo quanto àquilo que é estatisticamente menos comum é tão natural quanto ser humano. Desempenha, aliás, uma importante função protectora e de conservação dos sistemas sociais. Todos os habituais processos de socialização nos encaminham, desde tenra idade, à assunção de vários papéis sociais, várias máscaras à maneira das personae da tragédia dionisiana, que vamos usando, de modo “adequado”, nos vários ambientes sociais em que nos movemos. Assim, o José-profissional é diferente do José-amigo, marido, irmão ou cidadão confrontado com os assuntos da “res publica”. A isto chama-se “inteligência social e emocional”.

O problema é quando um dado papel não é exercido de acordo com aquilo que se convencionou designar por “normal”, como quando nos apresentamos vestidos de certa forma, supostamente não canónica, em dado local. Quem determina essa forma e a forma em si são totalmente discutíveis e baseados num periclitante equilíbrio social relacionado com um certo tempo histórico e uma dada geografia. Donde, por definição, as saias num homem num espaço como o Parlamento são tão contingentes quanto a ideia de que um advogado deve estar sempre de fato e gravata ou que uma prostituta deve usar roupa decotada e que realce as formas.

O outro, o “alienus”, é o nosso “eu” em relação com o meio ambiente e sempre que, por qualquer motivo, esse outro foge às convenções sociais, pode representar uma ameaça para certas pessoas. Tal receio pode fundar-se numa panóplia de causas: o facto de esse outro, ao fim e ao cabo, ser a nossa imagem em espelho e não gostamos do que verdadeiramente nela vemos reflectido; trata-se de uma ofensa ao quadro axiológico pelo qual nos regemos e é a nossa segurança e certeza de “estar-no-mundo” (Heidegger) que surge maculada; quando o outro é apontado, satirizado e segregado do convívio social, a turba está entretida e, por isso, sem disponibilidade para se ocupar de outros traços meus que, porventura, correspondem a um “desvio” a uma qualquer média, moda ou mediana sociais, sejam o que forem tais conceitos.

No âmbito dos ditos “comportamentos não normativos”, de que o crime é somente um exemplo, este medo e a expiação através do outro de problemas intrinsecamente nossos é exponenciado. Desde o início da moderna Criminologia, com Lombroso, que o delinquente teria certas características anátomo-morfológicas que o converteriam no “criminoso nato” e, por isso, imediatamente reconhecível, o que permitiria que lhe aplicássemos medidas pré-delituais, afastando-o do convívio social.

Quando começamos a percorrer o atlas que acompanha a obra lombrosiana “O Homem Delinquente”, vamos reconhecendo traços fisionómicos de todos nós no típico violador, burlão ou ladrão. Daí o salto para a explicação de que seriam factores psicológicos ou sociais que nos levam ao crime. Séculos depois, com a genética forense, andámos entretidos à procura do “gene do crime” e, ainda hoje, as neurociências tentam, debalde, encontrar malformações cerebrais que expliquem que alguém pratique um crime. E não se ficará por aqui. Isolar uma dada característica no outro como determinista para a comissão de um delito é o acto mais humano e enganador que pode existir.

Se eu não faço parte desse grupo de pessoas, então sou um “ungido” do lado dos bons e que pode pré-julgar os demais, assim encontrando neles bodes expiatórios para responsabilidades que também são minhas. E a consciência dorme em paz. Afinal, eu nunca serei capaz de praticar qualquer acto desconforme aos padrões sociais, por não ser como “eles”.

Simplesmente, a ciência vem demonstrando, uma a uma, que as teorias monofactoriais da etiologia criminal, do desvio, da orientação sexual, das escolhas na vida – desde as mais simples às mais complexas – são plurifactoriais e, em muitos casos, permanecem ainda um mistério para o conhecimento humano. E ainda bem. No dia em que soubermos tudo sobre o ser humano, não teremos razões para nos levantarmos da cama ou estímulos para as interacções sociais. A ciência vai-nos provando, com clareza, que nascemos todos humanos, mas o preconceito é, na verdade, uma construção social meramente opcional.

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