De Lisboa a Aruba, o Shortcutz nasceu para encurtar distâncias

O movimento promotor de curtas-metragens está quase a completar dez anos, numa altura em que já está presente em 12 localidades portuguesas — e quase numa mão cheia de cidades lá fora. Com mais de 1400 sessões até hoje, o que explica o fenómeno Shortcutz?

Foto
Shortcutz de Guimarães Carolina Ribeiro

A ideia começou a ganhar forma na mente de Rui de Brito em 2009, quando o realizador, pela experiência e conhecimento que possuía do meio, se apercebeu de algumas deficiências no circuito português de curtas-metragens. “Muito fechado, limitado a alguns festivais esporádicos e de acesso muito restrito”, descreve anos depois num email ao P3. Depois de algum tempo a limar arestas, apresentou (e aplicou) a sua solução para o problema, desenhando um formato que permitia “quebrar completamente com os moldes usuais de outras mostras de curtas”. Nascia assim o Shortcutz.

A receita é composta por ingredientes aparentemente simples — sessões semanais ou quinzenais de exibição de curtas-metragens em espaços informais e de pequenas dimensões, onde o contacto entre espectadores e membros das equipas técnicas é privilegiado e o acesso é livre. Também há uma componente de competição, geralmente com dois ou três filmes a lutarem pelo prémio de melhor curta da noite, o qual é decidido por um júri. O ideólogo (e quem o acompanha nesta aventura) garante que a chave do sucesso está aqui, naquilo que permite ao Shortcutz ser um “ponto de encontro regular e informal, onde a nova geração de realizadores, profissionais e amadores do meio podem partilhar o seu trabalho”.

Em Janeiro de 2010, o bar Bicaense, em Lisboa, acolhia a primeira sessão. E se inicialmente pairavam no ar dúvidas quanto à sustentabilidade do projecto a longo prazo, devido à insuficiência de curtas-metragens para exibir semanalmente, estas rapidamente se dissiparam. Ao ponto de, nove anos e 349 sessões depois, o realizador e fundador reconhecer que as incertezas se deviam ao “total desconhecimento, à altura, do real panorama do novo cinema português”.

Foto
O realizador Rui de Brito criou o Shortcutz em 2009 Rita Carmo

No coração do Porto para discutir “questões importantes”

A cidade do Porto integrou o movimento em Setembro de 2010 com Luísa Sequeira ao leme. Antes de assumir funções, trabalhara na RTP num programa dedicado ao cinema em língua portuguesa, a propósito do qual entrevistou Rui de Brito. Ele fez-lhe o convite e Luísa aceitou, até porque “no Porto não havia nada do género”. Confessa que o conceito “democrático” do projecto a convenceu — a submissão das curtas é feita junto dos representantes locais através do site da Shortcutz e qualquer pessoa o pode fazer. “A entrada é gratuita e há a componente de formação do público. As pessoas sabem que em determinado dia, naquela cidade, há curtas-metragens para ver. Depois dos filmes os realizadores estão lá, disponíveis para uma conversa, uma tertúlia.”  

A actual casa do Shortcutz no Porto é o Maus Hábitos, um espaço “incontornável no que diz respeito à programação cultural”, situado no coração da cidade. Embora este possa ser o “palco ideal” para a produção portuense se exibir, Luísa garante que não faz da ligação à cidade um factor decisivo na hora de seleccionar os filmes que integram a programação, até porque a “diversidade” é uma premissa essencial. Prova disso são as parcerias estabelecidas ao longo dos anos com outros festivais, como é o caso do Festival Feminista do Porto ou da Mostra Anti-Racista.

Estas e outras entidades parceiras não são, obviamente, escolhidas ao acaso e Luísa não foge ao papel que a plataforma pode ter enquanto promotora de debate, principalmente de âmbito social, através dos “filmes de urgência”. Destaca, a título de exemplo, um documentário sobre o Mercado do Bom Sucesso, “feito semanas antes de este encerrar para obras”. O filme foi apresentado no Shortcutz Porto, numa altura em que um movimento de cidadãos lutava contra a intervenção e reconversão do espaço, e a sessão contou com a presença de antigos trabalhadores. “São filmes urgentes que têm de ser discutidos e, como este é um projecto regular, os realizadores têm aqui um espaço para isso.”

No próximo dia 21 de Dezembro, a actualidade volta a estar em destaque. Não na típica sessão semanal, mas no “Dia Mais Curto”. À semelhança de anos anteriores, organização, público e convidados mudam-se para o Mira Fórum, em Campanhã, para comemorarem o Dia Internacional da Curta Metragem, que este ano dará destaque à actual situação brasileira, pela mão de filmes e realizadores brasileiros. Afinal de contas, “é necessário discutir e abordar questões que são importantes”.

Em Viseu, contraria-se a “interioridade”

A entrada de Carlos Salvador e Luís Belo na rede Shortcutz não chegou por convite. O primeiro contacto deu-se quando Carlos, na altura a viver em Lisboa, marcou presença numa sessão e começou a pensar na possibilidade de levar o projecto até ao interior do país, mais precisamente até Viseu. Apesar de se confessar um “apaixonado pelo conceito de curta-metragem”, o professor de artes visuais mostrou-se sempre consciente das múltiplas dificuldades que iriam encontrar caso decidissem avançar com a ideia — afinal de contas, não podiam entrar “só porque sim”, porque lhes “apetecia”.

Decidiram, então, testar as águas primeiro. Durante o Verão de 2012, organizaram algumas sessões — para as quais convidaram sempre um realizador —, com os custos das viagens e das deslocações a serem suportados pelos dois organizadores. O resultado? “Casa sempre cheia.” A adesão do público foi o empurrão que faltava para fazerem a chamada decisiva. Do outro lado do telefone esperava-os Rui de Brito. Carlos presume que o fundador da rede “tenha ficado muito surpreendido porque o projecto existia nas duas maiores cidades portuguesas e, de repente, Viseu queria entrar nesse grupo”. Comprometeram-se com “trabalho, esforço e dedicação” e em troca receberam um “sim”.

Foto
Carlos Salvador a apresentar uma sessão DR

As dificuldades que Carlos antevia acabaram por aparecer, mas não da forma mais expectável. Isto porque Viseu “é uma cidade muito urbana no que à programação cultural diz respeito”. “Aquilo com que temos de lidar é com sextas-feiras à noite cheias de oferta cultural e as pessoas têm que escolher onde querem ir.” E entre as várias opções está o Shortcutz. Mesmo assim, contam com um público já fidelizado que lhes permite atingir uma média de 50 a 60 espectadores por sessão, um número superior ao das sessões lisboetas.

Mas dizer que a “interioridade” não tem impacto num projecto desta natureza seria mentir. Por isso, e como forma de facilitar a presença de convidados, a organização conta com a ajuda da Câmara de Viseu, de um hotel da cidade e, sobretudo, com a “generosidade das pessoas que fazem cinema e que se disponibilizam para mostrar os filmes e conversar com o público”. Numa tentativa de contrariar esta condicionante territorial, Carlos e Luís também se esforçam por levar reputados festivais de cinema, normalmente realizados a litoral, até terras de Viriato. Por lá já há “extensões” do Indie Lisboa, das Curtas de Vila do Conde, do Motel X, da Monstra, do FEST e do Leiria Film Fest.

Em Amesterdão, nunca foi “uma coisa pequenina”

Perante o sucesso alcançado dentro de portas, a transição do projecto para o plano internacional parecia o passo mais lógico e natural — cumprindo, assim, o seu desígnio original. O pontapé de saída foi dado por Londres, em Outubro de 2010, com Berlim, Madrid e Barcelona a seguirem-lhe os passos. No entanto, foi e é em Amesterdão que o movimento conseguiu atingir níveis de maior aceitação por parte de público e realizadores. Tudo começou em 2013, quando Alexa e João Carlos Rodrigues deixaram Portugal rumo à capital holandesa. Na mala levaram “a vontade de tentar implementar” o Shortcutz naquela que seria a sua nova casa. O sucesso foi imediato.

Foto
Rutger Hauer esteve presente numa sessão do Shortcutz Amesterdão DR

“A ideia era fazer uma coisa mais pequenina, mas na primeira sessão tivemos logo 300 pessoas”, lembra Alexa. A partir daí, foi sempre a crescer. Todas as semanas têm a concurso “duas curtas do novo talento holandês”, mas também um convidado especial, “uma personalidade do meio já estabelecida na Holanda que ajuda e inspira aqueles que estão a começar”. De facto, são muitos os nomes de referência ligados ao Shortcutz Amesterdão — pelas sessões já passaram, por exemplo, o produtor Jan Harlan, cunhado de Stanley Kubrick, e o actor Rutger Hauer, célebre por ter interpretado o cyborg de Blade Runner, que recentemente faleceu

Apesar das diferenças que possam existir de cidade para cidade, há uma característica comum a toda a rede que se prende com a necessidade de dar um palco (ou deveríamos dizer uma tela?) a profissionais do cinema que de outra forma não teriam. Amesterdão não é excepção, já que também ali existe a sensação de “que são sempre os mesmos”. Talvez seja esta a justificação para que um movimento nascido em Portugal há quase dez anos tenha ultrapassado as 1400 sessões e esteja hoje presente em 16 locais, espalhados por dois continentes — e mais virão.

“Há milhares ou milhões de pessoas a produzir conteúdos no mundo inteiro, é por isso que plataformas como estas são super importantes”, refere João, com Alexa a realçar a qualidade desses mesmos filmes: “Há muitas coisas que não estão sequer a ter público. Estamos a falar de conteúdo muito melhor que alguns blockbusters que aí estão e não estão a ser vistos, o que é uma pena”. É, remata João, uma “realidade transversal comprovada pela facilidade com que o conceito se expandiu para Berlim, Amesterdão, Aruba ou Santa Catarina, no Brasil”.

Sugerir correcção
Comentar