Sergio Moro abre inquérito ao depoimento que liga Bolsonaro aos autores da morte de Marielle Franco

Nome do Presidente do Brasil surge na investigação. Suspeito do homicídio da vereadora do Rio esteve no condomínio de Bolsonaro no dia do crime. Presidente brasileiro negou qualquer envolvimento. Procurador-geral diz que tudo não passa de um “factóide”.

Presidente do Brasil
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Bolsonaro estava em viagem na Arábia Saudita quando soube da notícia da Globo LUSA/STR
,Rio de Janeiro
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Marielle Franco e o seu motorista, Anderson Gomes, foram assassinados a 14 de Março de 2018 LUSA/Mario Vasconcellos HANDOUT

O ministro da Justiça do Brasil, Sergio Moro, enviou ao procurador-geral da República, Augusto Aras, um pedido de abertura de um inquérito para investigar o depoimento do porteiro do condomínio onde mora o Presidente, na Barra da Tijuca (Rio de Janeiro). O pedido surge a sequência da divulgação, pela rede Globo, da notícia de que um dos suspeitos da morte da vereadora Marielle Franco esteve no condomínio no dia do assassínio.

Segundo o Jornal Nacional da Globf6o, o nome do Presidente Bolsonaro consta, por isso, no processo de investigação. E citava o porteiro do prédio relatando o que aconteceu nesse dia - o homem, Élcio de Queiroz, chegou e pediu-lhe para ligar para a casa de Bolsonaro, onde lhe atendeu “seu Jair”, disse o porteiro, garantindo que depois o viu pelas câmaras de vigilância dirigir-se a outro apartamento.

Em viagem na Arábia Saudita, o Presidente brasileiro não perdeu tempo a reagir à notícia através de um directo no Facebook. “Ou o porteiro mentiu, ou induziram o porteiro a conduzir um falso testemunho, ou escreveram algo no inquérito que o porteiro não leu e assinou em baixo em confiança no delegado ou naquele que o foi ouvir na portaria”, disse o Presidente que não estava no Rio de Janeiro nesse dia de 14 de Março de 2018.

Bolsonaro era então deputado e as suas impressões digitais, que provam que os parlamentares assistem às sessões, estão registadas em Brasília. “A Globo diz que as minhas digitais estavam aqui em Brasília. Eles não negam isso. Mas sempre fica a suspeita”, disse o Presidente.

Jair Bolsonaro anunciou que ia pedir a Sergio Moro para intervir junto da Polícia Federal (que está na dependência directa do Ministério Público) para que o depoimento do porteiro seja repetido. “Estou conversando com o ministro da Justiça, [para ver] o que pode ser feito para a polícia pegar o depoimento novamente”.

Moro reagiu depressa e já fez o pedido. Aras foi igualmente rápido e remeteu o pedido para o Ministério Público federal, mas desvalorizou o caso e disse que se trata de um “factóide” em que o Presidente é “uma vítima”.

Filho nega porteiro

O vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro, filho do Presidente e que também mora no condomínio, disse já ter ouvido a gravação da portaria e garantiu que não houve qualquer contacto com a casa de Jair Bolsonaro. 

A Globo teve acesso aos registos da portaria do Condomínio Vivendas da Barra, onde também mora Ronnie Lessa, suspeito de ser o autor dos disparos que mataram Marielle Franco e o seu motorista, Anderson Gomes.

O porteiro contou à polícia que, horas antes do crime, o antigo membro da Polícia Militar ligado a milícias armadas Élcio de Queiroz (suspeito de ter conduzido o carro usado no crime), entrou no condomínio e disse que ia para a casa de Jair Bolsonaro. O porteiro registou o seu nome no livro de entradas no condomínio privado. 

Queiroz, de 46 anos, pediu-lhe que ligasse para o apartamento 58, a residência de Jair Bolsonaro, para poder entrar (Carlos Bolsonaro mora no 36). No seu testemunho aos investigadores, o porteiro disse ter recebido ordem para autorizar a entrada de um homem que, do outro lado do telefone, se identificou como “Seu Jair”.

Porém, continuou o porteiro, que disse ter seguido a entrada do homem pelas câmaras de vigilância, Queiroz foi para a casa 65, residência de Lessa, também antigo polícia militar e ligado a milícias do Rio de Janeiro.

Estranhando o comportamento do visitante, o porteiro disse ter voltado a ligar para a casa de Bolsonaro a perguntar se sabia para onde o ex-polícia se estava a dirigir. “Seu Jair” disse que sabia. 

Lessa e Queiroz foram detidos a 12 de Março deste ano.

Os investigadores estão a tentar recuperar as comunicações do intercomunicador, que gravam as conversas, para apurar quem é o “Seu Jair”.

A entrada do nome de Jair Bolsonaro na investigação cria, porém, um obstáculo ao Ministério Público: cria limitações uma vez que o Presidente tem imunidade e apenas altas instâncias judiciais o podem investigar. Representantes do Ministério Público foram ao Supremo Tribunal Federal, em Brasília, a 17 de Outubro, para apurar se podem continuar as investigações. O presidente do Supremo, o juiz Dias Toffoli, ainda não respondeu.

Reacção “intempestiva"

No seu discurso de reacção à notícia, Jair Bolsonaro acusou a Globo de violar o segredo de Justiça e responsabilizou o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, pela passagem da informação.

“Esse processo está em segredo de Justiça. Como chega na Globo? Quem vazou para a Globo? Segundo a Veja, quem vazou esse processo para a Globo foi o senhor governador Witzel. O senhor governador Witzel que se explique agora como é que ele vazou esse processo”, acusou o chefe de Estado brasileiro.

A resposta de Witzel não tardou e, em comunicado, disse recusar “condenar sem provas” e que foi “atacado injustamente”. “Não compactuo com vazamentos à imprensa”, disse o governador, acrescentando lamentar a “manifestação intempestiva” de Bolsonaro.

Witzel, um juiz ultraconservador sem experiência política prévia eleito há um ano, e Bolsonaro eram aliados, mas têm dado sinais de afastamento, sobretudo desde que o governador carioca manifestou a ambição de se candidatar às presidenciais de 2022.

Um possível mandante

As investigações ao homicídio da vereadora e do seu motorista avançam lentamente e ainda não há conclusões sobre quem ordenou as mortes. O último desenvolvimento nas investigações foi o surgimento do nome de Domingos Brazão, conselheiro afastado do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro e ex-líder do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) na Assembleia Legislativa estadual.

É o “principal suspeito de ser o autor intelectual dos assassinatos” pela ex-procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que o acusou de obstrução à Justiça e de atrapalhar o trabalho da polícia ao pedir ao Superior Tribunal de Justiça que retirasse a investigação à polícia estadual e a passasse para a polícia federal. 

O nome de Brazão surgiu numa conversa, escutada pelas autoridades, entre Jorge Alberto Moreth, membro das milícias na zona do Rio das Pedras, na zona oeste do Rio, e o vereador Marcello Sicilliano, do Partido Humanista da Solidariedade, a 8 de Fevereiro deste ano. Na conversa, Moreth, entretanto detido, disse: “Os moleques foram lá, montaram uma cabrazinha, fizeram o trabalho de casa, tudo bonitinho, ba-ba-ba, escoltaram, esperaram, papa-pa, pa-pa-pa pum. Foram lá e tacaram fogo nela.”

Moreth refere-se depois a outro antigo elemento da Polícia Militar, Marcus Vinicius Reis dos Santos, o “Fininho”, que pertence à milícia do Rio das Pedras: “Tu não conhece o ‘Fininho’, que trabalha pro Brazão aqui no Rio das Pedras? (…) Ele fez esse contacto, o bagulhinho foi quinhentos conto, irmão, pra matar aquela merda, quinhentos cruzeiros. Cada um levou uma pontinha, o carro saiu realmente lá de cima do Floresta [um clube na zona oeste do Rio], eles foram lá, tiraram foto, câmera, ba-ba-ba, só que o carro era um doublé e o carro já acabou, a arma já acabou. Um dos moleques já está foragido por outras coisas, eles têm pica pra caralho. De todos esses caras que morreram eles têm pica. Quem empurrou foi os três moleques a mando de Sr. Brazão, simples”. 

Mas Moreth diz desconhecer a motivação para Brazão ter encomendado o assassínio por 500 mil reais (112 mil euros). “Agora, a motivação do Brazão, se foi por motivo torpe, ou por ganância, ou por raiva da mulher, por qualquer coisa … porque eles não acharam que ia dar essa repercussão toda, chefe!”, disse na conversa. Brazão negou as acusações. 

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