Jesus, a ameaça portuguesa

Há um estado de encantamento mútuo que atravessa hoje o Estádio da Gávea, no Rio de Janeiro. De um lado, uma multidão de adeptos sedenta de vitórias e em êxtase com a revolução que foi operada no Flamengo, nos últimos quatro meses. Do outro, um treinador que recupera os dias de glória, com um desafio e um contexto à sua altura. Todos sabemos como é efémero o namoro correspondido no futebol, mas, num certo sentido, a aposta de e em Jorge Jesus já valeu a pena.

Para o bem e para o mal, Jesus é um treinador que agita as águas por onde passa. Senhor de uma personalidade sem meio-termo (ou se adora, ou se odeia), espoleta tantas reacções em seu redor como o número de ocasiões de golo que criam as suas equipas. E demasiadas vezes acaba por atrair a discussão para o domínio do carácter e do egocentrismo, relegando para segundo plano o verdadeiro debate que o seu trabalho deve ser capaz de gerar: o debate sobre o jogo.

Foi assim em Portugal, num carrossel de provocações e supostas aleivosias que acirraram os ânimos e agudizaram a rivalidade Benfica-Sporting, e está a ser assim no Brasil. Desta vez, sublinhe-se, com o técnico português a desempenhar o papel de actor secundário na polémica. A fórmula “instantânea” com que mudou o paradigma do Flamengo está a gerar urticária em muitos dos companheiros de profissão e, num país em que o “bate-boca” costuma ter mais sal do que na maioria do futebol europeu, tem até sido Jesus a pôr alguma água na fervura. Irónico?

É sempre mais fácil ser magnânimo quando se está na mó de cima, mas o Jorge Jesus de outros tempos teria cavalgado a onda com sobranceria. Essencialmente porque sabe, melhor do que ninguém, o valor das suas ideias e da sua metodologia. Digam o que disserem Renato Gaúcho ou Argel, argumentem o que argumentarem sobre o investimento no plantel do “Mengão”, a aposta em jogadores prontos a usar ou a estrutura e as condições de apoio que hoje o clube proporciona, não há palavras que abafem a mudança que é visível dentro de campo.

As meia-finais da Taça dos Libertadores são paradigmáticas a este respeito. Mais do que o resultado desnivelado das duas mãos (6-1), o que fica para a história é uma assimetria tremenda na preparação e na abordagem ao jogo. Como se fosse possível vermos, num rectângulo de 120m por 90m (medidas máximas), o oceano de diferenças que separa o Grémio do Flamengo por estes dias.

Detalhista por natureza, Jorge Jesus rapidamente pôs em prática a defesa zonal que desde sempre incutiu nas suas equipas. Um plano facilitado pela experiência europeia de três dos habituais titulares do quarteto (Rafinha, Filipe Luís e Pablo Marí), é certo, mas rapidamente assimilado pelo colectivo nos momentos da organização e transição defensivas. Depois, apostando numa dupla de avançados que dá corpo ao 4x4x2 que há muito elegeu como sistema preferencial, trabalhou o ataque organizado na base de um futebol associativo que traz à luz do dia o melhor de talentos como Everton Ribeiro ou De Arrascaeta.

A alquimia do treinador português também é visível nos esquemas tácticos. Não foi por acaso que quatro dos cinco golos apontados ao Grémio na segunda mão nasceram de bolas paradas ofensivas. A capacidade de criar zonas cinzentas na grande área contrária, utilizando o posicionamento cirúrgico de algumas unidades que têm como única missão bloquear a movimentação dos adversários para libertar o melhor finalizador para o contexto, é tão sagaz quanto inovadora para os padrões da maioria das equipas do Brasileirão. E aproveita da forma mais mordaz as limitações de um adversário (no caso, o Grémio) que defende com referências individuais e que é, consequentemente, mais susceptível de cair nas ratoeiras estratégicas que Jesus prepara meticulosamente.

Com Jorge Jesus, o Flamengo deixou subitamente de correr atrás dos rivais, para os ultrapassar a alta velocidade e passar a ser, ele próprio, referência e unidade de medida para um campeonato que precisa de dar um passo em frente. Nos últimos anos, outros técnicos estrangeiros passaram pela realidade brasileira (Jorge Sampaoli, Juan Carlos Osorio, Diego Aguirre) sem conseguirem causar tanto impacto, provavelmente por aceitarem uma solução de compromisso entre as idiossincrasias do talento sul-americano e a régua e esquadro tácticos do pensamento europeu. Jesus, porém, não é um homem de concessões e há-de sempre vencer e perder de acordo com os seus princípios.

Lá como cá, haverá sempre rivais a roerem as unhas na expectativa de que chegue o primeiro grande desaire, simplesmente porque encaram Jesus como uma tremenda ameaça a um modo de fazer diferente, que dá muito mais liberdade à acção individual dos jogadores. Enquanto o entenderem assim, ao invés de nele verem uma oportunidade e um impulso flagrantes para evoluírem, dificilmente estarão a fazer mais do que a conduzir, indirectamente, as próprias equipas à estagnação.

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