Sobre a desorganização do Governo: uma proposta construtiva

Um governo de setenta membros é manifestamente grande, para não dizer obeso, o que, para lá das questões de credibilidade política, prejudica a sua eficácia.

1. A matéria da organização do governo só ocupa o espaço público nos escassos dias em que se analisa e discute a formação de um novo governo ou, quando muito, uma remodelação mais profunda. Fora disso, a organização do governo é assunto que não ocupa nem preocupa. Trata-se de um descaso ou desatenção tanto mais estranhos quanto se sabe que a eficácia e a eficiência da acção governativa dependem da sua estrutura organizatória, da funcionalidade da coordenação dos vários ministérios e, em especial, da capacidade de articulação dessa estrutura com a miríade de vértices administrativos dos serviços públicos. A questão reveste, aliás, peso político e constitucional, pois a “organização e funcionamento” do governo vem a ser a sua única competência legislativa que é rigorosamente exclusiva. Não há aqui espaço para a interferência do Parlamento. Quem pode ter uma palavra de controlo e até conformação – de resto, absolutamente definitiva, porque o seu veto não é nem superável nem contornável – é o Presidente da República. Essa prerrogativa presidencial é de uso muito escasso e normalmente confinado às conversas confidenciais entre Chefe de Estado e Chefe de Governo.

2. Este poder de organização é um poder de “auto-organização”. Inspira-se directamente na tradição germânica da Teoria Geral do Estado, que atribuía aos “órgãos de soberania” o chamado “Organisationsgewalt” – que melhor se poderia traduzir por poder de “auto-organização”. Em alguns clássicos, este é mesmo um poder pré-constitucional, não necessariamente no sentido de que provém incólume dos tempos da monarquia absoluta, mas mais no sentido de que o seu reconhecimento se impõe até ao legislador constituinte. Com efeito, se a qualidade de “órgão de soberania” postula um poder de organização exclusivo, até as constituições têm de o reconhecer ao “estabelecer” um “órgão de soberania”. O poder de “auto-organização” dos Governos é, pois, um poder “natural” ou naturalmente inerente à essência dos Governos.

3. O XXII Governo constitucional tomou posse no sábado passado. As questões de composição, dimensão, organização e hierarquia são da responsabilidade exclusiva do Governo e, na prática, em governos de um só partido, do primeiro-ministro. A responsabilidade pela desmesurada dimensão do actual Governo e pela sua medíocre estrutura organizatória repousa portanto em António Costa. Um governo de setenta membros é manifestamente grande, para não dizer obeso, o que, para lá das questões de credibilidade política, prejudica a sua eficácia. Um governo com quatro ministros de Estado, com pastas largamente sobrepostas (por exemplo, planeamento, coesão territorial, administração pública) e com múltiplas transições de “segmentos de pastas” de ministério para ministério é o pasto ideal para a confusão e indefinição de competências. A utilização de novas e apelativas denominações – que, em rigor, aludem a competências que já estavam cobertas pelas designações convencionais – contribui enormemente para a incerteza e ambiguidade. Choca de sobremaneira que um político com a experiência de António Costa tenha sucumbido a tantas tentações. Basta conhecer o tempo que leva a aprovação de leis orgânicas ou a quantidade de direcções-gerais ou institutos públicos que mudam de “mãos” (em sede de hierarquia ou tutela) para perceber os riscos de desperdício, paralisia e impasse que estão associados a esta bravata.

4. Em Portugal, o valor da estabilidade é muito apreciado. Não se compreende, pois, como pode a estrutura e concepção organizatória dos governos variar tão violentamente de executivo para executivo e, por vezes, por via de remodelações, dentro do mesmo executivo. Mesmo quando não há instabilidade política, há uma aflitiva instabilidade organizatória. Estou especialmente à vontade para criticar as opções agora tomadas, pois fui abertamente crítico do governo minimalista – o governo de onze ministérios – que Passos Coelho apresentou em 2011. Também aí se procedeu à agregação de pastas com poucas afinidades, à redução do núcleo político de coordenação, à redistribuição de muitos “segmentos de competências” e à fusão de imensas entidades públicas com tutelas e hierarquias diversas. Por razões parcialmente inversas e parcialmente idênticas, ambas as experiências organizatórias são claramente negativas. O país já é muito burocrático, com difícil acesso dos cidadãos à administração e à governação; mas com esta pecha da permanente instabilidade institucional e administrativa a vida dos cidadãos roça o infernal.

5. De há muito que defendo que os partidos com assento parlamentar, mas em particular os dois maiores, deveriam acordar num organigrama governamental válido para um período longo (8,10 ou 12 anos). Estabelecer o número e designação dos ministérios e definir as suas atribuições e competências. Nas denominações deveriam cingir-se aos nomes convencionais, que, quando bem interpretados, abrangem as novas realidades (a “acção climática” é notoriamente uma dimensão do ambiente). O mesmo devia valer para as secretarias de Estado, embora aí com um pouco mais de flexibilidade. Deveriam também “fechar” a recondução dos serviços públicos (em termos de hierarquia, supervisão e tutela) ao departamento governamental pertinente.  Para garantir que cada novo Governo poderia traduzir algumas das suas prioridades nas respectivas composição e estrutura, poderia deixar-se espaço para dois “ministros sem pasta”, cuja “carta de missão” teria de ser inequivocamente definida e deveria perturbar o menos possível a distribuição pré-estabelecida. Claro que isso limitaria o poder de auto-organização do governo e a imaginação livre e fértil dos primeiros-ministros, que tanto gostam de reinventar a roda para cada novo atalho que decidem cavalgar. Mas ganhar-se-ia muito em previsibilidade, estabilidade e confiança dos cidadãos. E também, já agora, dos funcionários públicos. E ainda mais, em eficácia e eficiência.

Sim:  Sínodo dos bispos sobre Amazónia. A proposta de ordenação de padres casados, a admissão do diaconado das mulheres e o respeito pela diversidade e pela ecologia revelam coragem e esperança.

Sim: Mario Draghi. Terminou ontem o seu mandato e foi, sem dúvida, um dos rostos da União Europeia. Oxalá, a sua herança seja continuada e o seu conselho sobre a política orçamental seja seguido.

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