Vamos falar de saias: uma ditadura da moda ou uma arma para rasgar convenções?

A saia de um assessor no primeiro dia de actividade do novo Parlamento pôs o país a falar sobre códigos de vestuário, cruzando-os com comportamentos socialmente aceites. Afronta ou tendência?

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Sobre a saia do assessor da deputada do Livre, Paulo Morais Alexandre, docente na Escola Superior de Teatro e Cinema, nomeadamente de Psicossociologia da Moda, não tem dúvidas: “Trata-se claramente de uma declaração política (…) coerente com o programa apresentado [pelo partido].” O regresso das saias ao guarda-roupa dos homens poderá levar o seu tempo, se alguma vez voltar a estar mesmo na moda, considera, apesar de várias reputadas publicações o terem decretado há um ano e de estas peças serem uma constante pelas passerelles mundiais durante as concorridas semanas da moda

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Sobre a saia do assessor da deputada do Livre, Paulo Morais Alexandre, docente na Escola Superior de Teatro e Cinema, nomeadamente de Psicossociologia da Moda, não tem dúvidas: “Trata-se claramente de uma declaração política (…) coerente com o programa apresentado [pelo partido].” O regresso das saias ao guarda-roupa dos homens poderá levar o seu tempo, se alguma vez voltar a estar mesmo na moda, considera, apesar de várias reputadas publicações o terem decretado há um ano e de estas peças serem uma constante pelas passerelles mundiais durante as concorridas semanas da moda

Já a afirmação política é facilmente verificada com uma breve apreciação a um programa que usou como lema “Livre é igualdade” e onde se deixou claro que a pretensão passava por “promover a igualdade de género em todas as suas intersecções” e “combater a discriminação por orientação sexual ou por identidade de género”, assumindo “como prioridade (…) a importância da inclusão das questões LGBTQI+ de forma transversal nas políticas públicas” e “prevendo o reconhecimento de pessoas intersexo pela lei, incluindo a possibilidade de terceiro género no registo”.

Mas a (re)adopção da saia no vestuário masculino enquanto convenção poderá não estar para breve. Isto porque, explica o docente, mais do que uma tendência, a moda tende a responder a necessidades: foi o que aconteceu com as calças para mulheres no século XIX que, apesar, de serem defendidas pela activista Amelia Bloomer como uma forma de igualdade entre os dois géneros, só viriam a ter sucesso “quando as mulheres começaram a andar de bicicleta” ou a ocupar lugares nas fábricas. Porém, apenas surgiram como peças definitivas do conjunto feminino quando Coco Chanel incluiu na sua colecção as primeiras calças de corte feminino, já no século XX. Ainda assim, houve quem lhes resistisse e, ainda há menos de 50 anos, uma rapariga usar calças era sinónimo de ser pouco feminina ou, mais comummente, “maria-rapaz”.

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A deputada italiana junto ao Muro de Berlim, na cidade alemã, em 1987 Reuters

O caso da saia do assessor

A chegada de Rafael Esteves Martins, ao lado de Joacine Katar Moreira, a primeira deputada a conquistar um lugar pelo Livre – que reúne, por si só, várias estreias: é a primeira deputada gaga, o que tem levantado questões e já levou o Livre a requisitar a alteração dos tempos de intervenção concedidos, e uma das poucas mulheres negras a ter chegado ao hemiciclo –, originou um burburinho transversal a toda a sociedade portuguesa, com críticas quanto ao gosto, discursos ofensivos dirigidos a quem se sentiu ofendido e, mesmo entre a ala mais liberal, com a indicação de que não se trataria da indumentária correcta para a função nem para o local.

“É a dessacralização do Parlamento”, sublinha Morais Alexandre, ainda que ressalve que não é um caso pioneiro: aconteceu quando Francisco Louçã, como deputado do Bloco de Esquerda, em 1999, recusou o uso da gravata (algo que, hoje, já não chama a atenção) ou quando, em 1987, Ilona Staller, uma actriz porno tornada activista e deputada italiana, mais conhecida por Cicciolina, visitou a Assembleia da República, onde se cruzou com a deputada e poeta Natália Correia, e exibiu os seios, que eram, de resto, uma das suas imagens de marca.

Contactado pelo PÚBLICO, Francisco Louçã prefere não comentar o sucedido há 20 anos no âmbito do caso actual, considerando que ainda é demasiado recente para se fazer uma análise.

Mas voltemos às saias. Porque se há quem diga que um homem usá-las não tem mal, depressa se ouve o remate de que para “a Assembleia é que não”, onde há códigos a ser respeitados. Porém, nem os códigos de vestuário foram sempre os mesmos nem há qualquer indicação de que a mudança não possa existir.

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Francisco Louçã no Parlamento em 1999 Daniel Rocha/Arquivo

Saia, primeiro foi o homem

O primeiro registo histórico de vestuário masculino surge na Mesopotâmia, onde os homens usavam saia, com franjas ou adornadas, como comprovam as estátuas com origem no período entre 2900 e 2350 a.C. A partir de então, todas as culturas pré-Clássicas adoptaram o código de indumentária, que viria a conquistar adeptos no Antigo Egipto (“a roupa masculina mais antiga (…) consistia numa única tira de linho enrolada nos quadris”, lê-se em A História da Moda, de J. Anderson Black, 1980) ou no moderno Império Romano. Aqui, lembra Paulo Morais Alexandre, que o uso da saia era sinónimo de civilização, enquanto um homem de calções era olhado como um bárbaro (gaulês, no caso), tendo inclusive sido criada uma lei que punia os homens que se atrevessem a exibir tais trajes.

O tipo de indumentária seria adoptado pelo Império Bizantino que, de resto, serviu de inspiração ao Cristianismo, no qual as túnicas (ou batinas) são usadas em situações formais ou mesmo de cerimónia – os que servem a Igreja são muitas vezes vistos de calças, mas sempre em ocasiões de grande informalidade. E, como lembra o professor, mesmo na cultura portuguesa o uso da saia por homens não é assim tão invulgar: é o traje do pauliteiro de Miranda.

Ao longo da História, a saia foi sendo uma das peças que não faltava a um guarda-roupa e a distinção entre as roupas de homens e mulheres assentava no tamanho da bainha: os homens usavam, sem pudor, saias curtas; as mulheres cobriam as pernas com as mesmas. Só o cruzamento com a cultura oriental, onde o nomadismo imperava assim como o montar a cavalo, predominando assim o uso de bermudas ou de calças entre o género masculino, veio trazer novidades ao guarda-roupa ocidental. Isso e o botão, que permitiu criar novos moldes sem beliscar a ergonomia.

Ainda assim, durante séculos, o género nem sempre era definido pelo vestuário. Nem pelo vestuário nem por outros códigos estéticos, como a maquilhagem: imagine-se, hoje, um deputado entrar na Assembleia de batom e blush, quando, nos séculos XVII e XVIII, eram adereços que, em conjunto com uma farta peruca, simbolizavam poder: a monarquia francesa foi exímia a mostrar isso mesmo, como explica a directora do Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, Emília Ferreira, num texto publicado por si no Facebook, onde recorda que “foi, na verdade, o século XIX (sobretudo a partir da segunda metade) que começou a instituir novos códigos cromáticos (uma clara monotonia cromática, diga-se) para os homens e lhes declarou que as calças deviam descer até aos tornozelos". Aliás, ainda muito recentemente, era comum vestir os bebés exactamente com o mesmo tipo de cueiros, fossem meninos ou meninas, rendas e bordados incluídos.

A cultura da saia

“Se tivesse sido eleito um muçulmano e este fosse de saias (túnica) para o Parlamento, o facto não teria as mesmas repercussões”, considera Paulo Morais Alexandre. Na cultura muçulmana, aliás, não só o uso de saia é transversal a ambos os sexos, como, em alguns países, o uso de calças permanece vedado a mulheres – caso do Sudão, onde, muito recentemente, houve relatos de mulheres acusadas de comportamento indecente pelo uso de tal peça de vestuário.

Pelo Ocidente, há uma clara preferência para que os homens se abstenham de usar saias, ainda que muitos tenham feito do seu uso uma afirmação. Quem, entre os nascidos antes da década de 1980, não se lembra da ousadia de os Heróis do Mar em recuperar as vestes masculinas do tempo dos Descobrimentos em que as saias predominavam? Já na época, era comum ver um ou outro rapaz a usar saias, sobretudo nos meios mais alternativos – mas o facto era lido como uma simples rebeldia, sem que ninguém pusesse em causa que, tal como o direito de usar calças era tanto para a mulher como para o homem (e, na década de 1980, as calças nas mulheres, num Portugal acabado de sair de uma clausura forçada em relação ao resto do mundo, ainda não eram propriamente bem vistas), as saias também poderiam ser usadas por todos, sem distinção de género. Muito mais tarde, na segunda metade da década de 1990, surgiram os Excesso, cujas aparições de saias de alguns dos membros da boys band nunca comprometeram a loucura das fãs (maioritariamente do sexo feminino)

Hollywood e a cena musical. sobretudo americana, têm vindo a dar um empurrão na alteração de paradigma. Mesmo sem contar com os másculos escoceses kilts que, para muitos, não são exactamente saias e que já foram usados por nomes de reverência como Patrick Stewart ou Sean Connery (escocês de gema – de Edimburgo). Mais difícil será nomear todos os cantores rap que já fizeram uma aparição em palco de kilt ou de saia: entre muitos outros, Kanye West, Jaden Smith, Young Thug, Lil B, Puff Daddy ou A$AP Rocky.

Outros, vistos como ícones de masculinidade fazem questão de usar saias em público: casos de Vin Diesel, Rob Lowe, Brad Pitt, Keanu Reeves.

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