Racismo: o mundo não é a preto e branco

O que eu não posso é permitir que pessoas que sejam pretas por dentro e pretas por fora estejam convencidas que têm mais legitimidade do que alguém como eu, preta por dentro e branca por fora, para falar de racismo.

O mundo não é a preto e branco. O mundo é a cores. As pessoas são a carga genética e as origens que têm. E quem não assume quem é, não defende nem é capaz de defender os outros. Sou preta por dentro e de pele cor de fiambre por fora, ou branca, como chamam às pessoas com esta cor de pele. Nasci assim. Não tenho culpa. E não sou responsável pela genética. Ninguém escolhe a cor com que nasce.

Mas não é por ser branca que não posso pronunciar-me sobre o racismo. Tal como não sou homossexual e não posso deixar de falar sobre o estigma associado. Ou mesmo sobre os direitos e liberdades para as pessoas homossexuais. São pessoas como eu. Como tu. Como eles. Como todos. Assim, como não defendo e acuso agressores de mulheres, há tantos escondidos, de pele preta, branca, elitistas e snobes. Sem nobreza. Na verdade, verdadeira pobreza. O racismo é um assunto que deve ser da responsabilidade de todos: pretos, brancos, amarelos, castanhos, homens e mulheres. Assim como a mutilação genital feminina — típica na Guiné-Bissau (para mencionar apenas um país de língua portuguesa).

É falacioso, e até vergonhoso, carregar a história, pesada e má, transportando-a para o século XXI. Acusar o Estado do presente pelo Estado do passado, numa mistura de nobres e escravos. Se quisesse esconder as origens — a magia que é falar em forro e os meus patrícios dizerem, como é que esta branca fala a língua da terra? Mas há quem queira escudar-se na cor da pele, projetando esse peso que a escraviza para as costas de todos, em vez de desconstruir, de forma elevada, tijolo a tijolo, as camadas entre os que estimulam estes comportamentos, com mobilização superior e anti-racismo.

O que eu não posso é permitir que pessoas que sejam pretas por dentro e pretas por fora estejam convencidas que têm mais legitimidade para falar de racismo do que alguém como eu, que sou preta por dentro e branca por fora. Ao tentarem fazê-lo demonstram a sua incapacidade de isenção. E a falácia que tanto promovem, apontando aos outros o dedo indicador, esquecendo-se que, quando apontamos o indicador a alguém, temos quatro dedos virados para nós. 

Há semanas, a Associação Caboverdeana de Lisboa convidou-me para um debate sobre racismo, em representação de um determinado partido. Do outro lado, uma mulher, como eu, representava um Outro, Joacine  Katar-Moreira, uma simpática pessoa, afável no primeiro contato. Mas exala a raiva contra um país que agora representa no parlamento: a República Portuguesa. Nesse debate, acordei com o organizador que o inicio seria atribuído a Joacine e eu encerrava: democracia. A senhora convidada, como eu era, africana como eu sou, guineense como eu não sou, mas santomense como ela não é, arrolou consigo um arco-íris de pessoas, oriundas do seu partido, preparadas para o insulto vergonhoso.

E a senhora, em vez de se desvincular daquela atitude, até fez um sorriso de escárnio. A essa personalidade, Jorge Almeida, do ISEG apenas lhe dirigi, citando, as palavras do génio autor da Teoria Geral da Relatividade, confirmada na minha terra, São Tomé e Príncipe: “Duas coisas são infinitas: o universo e a estupidez humana. Mas em relação ao universo, ainda não tenho a certeza absoluta”. (A. Einstein).

Joacine queixava-se ser a mais velha de 11 irmãos e oriunda de uma família de intelectuais da Guiné-Bissau. E que os migrantes são maltratados em Portugal. O caminho para a liberdade é feito de entrega total. Despojarmo-nos de tudo e servir os outros. Serviço, etimologicamente, é servir os portugueses e os pagadores e migrantes, sem traumas. Sem recorrer à política para benefício pessoal. Porque há Áfricas, de um arco-íris mágico. Onde todos cabemos. E eu, comunicadora em saúde, recomendo aos deuses e diabos da democracia que temos o dever de respeitar os direitos e liberdades dos outros. E de exigir aos outros esse respeito.

Criar fossos e aumentar a discussão só nos faz partir as pontes que nos ajudam a ultrapassar barreiras. A mente humana é difícil. Complicada até. Mas a excelência da ciência obriga-nos a juntar tudo e todos num só mundo, o arco-íris. Criar leis não muda os comportamentos e ainda menos as ideias das pessoas. Mobilizarmos para a diferença sim. É que, como dizia António Barreto no PÚBLICO, já somos ameaçados (perseguidos até)!.

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