Deliciosa

Não é necessariamente mau perder-se a virginal mirada turística, ficam em maior destaque as coisas por detrás do pladur, revelam-se realidades que os circuitos oficiais dos passeadores se esforçam por ignorar ou esconder.

Foto
Education Images/Universal Images Group/Getty Images

“Barcelona, a deliciosa”. Penso que era este o título do texto que me introduziu de forma mais séria, para lá da cantoria de Freddy Mercury e de Montserrat Caballé, àquela cidade. Assinava-o Angel Luís de la Calle, correspondente do Expresso em Madrid, que aqui há uns anos prefaciou cada um dos fascículos do Guia de Espanha para portugueses, composto por dez volumes e um mapa de estradas.

A capa desse fascículo, que era dedicado à Catalunha e ao Parque Nacional de Aigüestortes, tinha uma fotografia daquela salamandra que nos espera à entrada do Parc Güell, em Barcelona. Nem Sagrada Família, nem Pedrera, nem Ramblas, nada: aquela estranha salamandra às cores, espumando água da boca, em grande plano.

Não era uma imagem lá muito apelativa. Felizmente havia, dentro do fascículo, textos e imagens bem mais interessantes, entre eles o tal “Barcelona, a deliciosa”. Lembro-me de a palavra “deliciosa” me remeter para chocolate, impressão reforçada pelas silhuetas da Pedrera, da Casa Batlló, das casas à entrada do Parc Güell, saídas de um conto de fadas. Eram como que bombons dispostos pela cidade para serem comidos.

Mas nenhum texto transmitia verdadeiramente o que era estar lá, aterrar no Passeig de Gràcia e sentir tudo a vibrar à volta, pessoas em movimento constante, carros para cima e para baixo, esplanadas cheias de gente, uma pujante demonstração de vida e força como nunca me tinha calhado ver.

Barcelona, nessa primeira vez, foi maravilhamento permanente, surpresa a cada passo, regalo indescritível e duradouro. Então era assim a Europa. A cidade parecia enormíssima, convidava a caminhadas longas — do Museu Picasso para o Parc da Ciutadella, nos recantos do Bairro Gótico, pelas Ramblas, junto ao porto, em Montjuïc. “Deliciosa”, sim, mas muito mais do que previa o texto.

O olhar virgem do turista é ferido de morte quando passeia por paisagens novas. Daí em diante pode ainda haver deslumbramento, mas não é nunca como o primeiro. Quebra-se o feitiço: não foi a cidade que mudou, fomos nós, a nossa circunstância. Os lugares são os mesmos, as pessoas talvez também sejam, o manto diáfano é que desaparece.

Barcelona, da segunda vez, foi reconhecimento de lugares já familiares, indiferença perante monumentos, olhares novos para minudências. Não é necessariamente mau perder-se a virginal mirada turística, ficam em maior destaque as coisas por detrás do pladur, revelam-se realidades que os circuitos oficiais dos passeadores se esforçam por ignorar ou esconder.

Foi por essa altura que vi nas ruas as primeiras grandes manifestações da Diada, o dia oficial da Catalunha, mas também outras que congregavam todo o tipo de reivindicações. Havia independentistas, anarquistas, activistas LGBT, lesados da austeridade. Num dos protestos, que fotografei exaustivamente mais para arquivo do que por outra coisa, encontrei um tipo com um cartaz do Zé Povinho, igual aos que se tinham visto em Lisboa uns meses antes durante as manifestações contra a troika. No Passeig de Gràcia, o mesmo que anos antes tinha visto perfeitinho, havia pessoas encapuzadas a pintar frases anticapitalistas nas montras dos bancos — coisa relativamente comum em Barcelona.

Barcelona, da terceira vez, foi uns anos mais tarde, quando pela cidade já se encontravam inúmeros cartazes “tourists go home e as luzes de Natal eram tristonhas. Aí parecia que sim, que alguma coisa tinha mudado na própria cidade, embora fosse complicado descortinar o quê. Rodeado por idosas, assisti ao espectáculo da Glenn Miller Orchestra no galinheiro do Liceu, luxo burguês de quem conhece os cantos à casa e já não sabe com que se entreter.

Esta sensação é óptima, é o que me acontece em Lisboa e me faz ainda ter prazer em deambular pela cidade, mesmo por sítios que calcorreei já mil vezes, lugares que julgo conhecer. Deliciosos como esta Barcelona, já depois da quarta e curta vez, em que me apanhei na penúltima fila de um Camp Nou em silêncio quase absoluto para assistir a um desinteressantíssimo jogo de futebol.

Barcelona, cidade que mesmo em fogo é atracção inescapável, faltam-me as palavras para a elogiar mais. Deliciosa, sim. É isso mesmo.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários