Uma verdade sobre a Catalunha

Convém a alguns sectores propagar a tese de que só há um nacionalismo nesta contenda: o catalão. Só que isso não é verdade. Do outro lado há um poderoso nacionalismo castelhanista que se recusa a aceitar a Espanha como um Estado plurinacional.

"Aquí yace media España, murió de la otra media.” Este epitáfio imaginário é da autoria de Mariano José de Larra, um representante do romantismo literário espanhol do século XIX. A frase será lida nas décadas seguintes como o prenúncio de um confronto trágico entre duas concepções de Espanha, que culminará na Guerra Civil de 1936-1939, e permanecerá no horizonte histórico como uma constante ameaça velada. Nem sequer o aparente milagre representado pela tão celebrada transição democrática conseguiu afastar definitivamente a sombra de tal fantasma. Ainda hoje o debate político espanhol manifesta um elevado grau de polarização pouco propiciador da promoção de reformas institucionais de que o país parece carecer.

Nas últimas semanas temos assistido à publicação na imprensa portuguesa de uma sucessão de artigos sobre o problema catalão. Tal facto sinaliza uma preocupação pelo tema absolutamente compreensível por razões de ordem histórica, geográfica e política. Nada do que se passa na Península Ibérica nos pode ser estranho. É por isso meritória a discussão aqui gerada acerca das convulsões presentemente observadas no território catalão. Já parece menos apropriado o tom predominantemente panfletário que tem marcado essa mesma discussão.

No início do ano de 2006 Pasqual Maragall enviou uma carta a Felipe González em que, a dado passo, se podia ler o seguinte: “A Catalunha é mais velha do que a Espanha mas agora estamos a inventar uma nova Espanha em que a velha Catalunha, a velha Castela, o velho País Basco e a velha Andaluzia terão direito a um lugar honrado. (…) A receita que propomos é bem conhecida, trata-se de uma solução federal que poderá oferecer as condições de uma verdadeira coabitação. Outra coisa qualquer abrirá as portas a uma maioria social na Catalunha que decidirá formalizar o seu desinteresse por Espanha.” Pasqual Maragall ocupava então a presidência do governo catalão e suscitava uma ampla consideração por toda a Espanha. Académico eminente, democrata convicto, político de reconhecida integridade moral, Maragall tinha-se destacado anteriormente como um brilhante presidente da Câmara de Barcelona. A sua imagem pública estava associada ao sucesso dos Jogos Olímpicos realizados naquela cidade em 1992. Profundamente catalanista não preconizava a independência, antes defendia, como referido atrás, a inclusão da Catalunha numa Espanha federal. Daí que as suas palavras tivessem uma ressonância especial. Em 2006 ele prenunciou com admirável lucidez tudo quanto veio a suceder pouco tempo depois. Ao que parece em Madrid poucos lhe deram ouvidos.

Ao contrário do que levianamente por vezes se afirma, o movimento independentista catalão não resulta de um nacionalismo étnico ou tribal de índole segregacionista. Essa é a tese preconizada pelos sectores mais conservadores da sociedade espanhola. Não corresponde, contudo, de forma alguma, à realidade. Este movimento independentista só alcançou as proporções que actualmente o caracterizam porque uma parte significativa da população da Catalunha se sentiu maltratada e ofendida pelos poderes concentrados em Madrid.

A adesão ao independentismo aumentou vertiginosamente nos últimos 15 anos, o que significa que algum acontecimento de carácter excepcional terá ocorrido neste período. Esse acontecimento está por demais identificado – corresponde à forma como as autoridades políticas e judiciais espanholas trataram um novo projecto de Estatuto Autonómico catalão. Tendo em vista uma revisão e uma actualização do anterior estatuto, datado de 1979, o parlamento catalão aprovou por uma ampla maioria um novo projecto de Estatuto Autonómico susceptível de corresponder a uma nova realidade cultural, económica, social e política. Quando tal projecto chegou ao parlamento espanhol em Madrid suscitou imediata controvérsia pela circunstância dos catalães se terem auto-afirmado como uma nação. Os parlamentares espanhóis admitiam, quando muito, que a Catalunha fosse definida como uma nacionalidade. Introduzida essa e outras alterações, a nova versão do estatuto foi posteriormente referendada pelos catalães. Os conservadores espanhóis e alguns governos autonómicos, inconformados, apresentaram de imediato um recurso de inconstitucionalidade contra este novo estatuto. Finalmente, a 28 de Junho de 2010, o Tribunal Constitucional exarou uma sentença que guilhotinava, sem apelo nem agravo, o documento em questão. Ninguém em Espanha ignorava o carácter politicamente tendencioso de um Tribunal Constitucional onde predominavam juízes de orientação ultraconservadora. A partir daí iniciou-se uma espiral de irracionalidade política que acabou por conduzir à penosa situação actual.

Convém a alguns sectores políticos espanhóis a propagação da tese de que só há um nacionalismo em questão nesta contenda: o catalão. Só que isso não é verdade. Do outro lado há um poderoso nacionalismo castelhanista que se recusa a aceitar a Espanha como um Estado plurinacional. Esse nacionalismo, profundamente intolerante e que, ao longo da História, demonstrou por diversas vezes uma exagerada vontade anexionista, é bem do nosso conhecimento. Não finjamos não saber que ele existe.

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