Os amigos são para as ocasiões (de celebração)

Wang Bing por Dominique Auvray e Bruce Chatwin por Werner Herzog: dois registos importantes e comoventes nos últimos dias do Doclisboa

<i>Nomad – In the Footsteps of Bruce Chatwin</i>
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Nomad – In the Footsteps of Bruce Chatwin
<i>Wang Bing, tendre cinéaste du chaos chinois</i>
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Wang Bing, tendre cinéaste du chaos chinois

Se as secções competitivas já praticamente só aguardam o palmarés que será divulgado ao fim desta tarde de sábado (antes da sessão oficial de encerramento com Technoboss de João Nicolau), o Doclisboa não termina ainda assim os seus encantamentos – bem pelo contrário. É mesmo sob o signo do cinema e sob o signo da amizade que se celebra o último fim-de-semana da edição 2019, que termina oficialmente este domingo, 27, mas se prolongará até quarta-feira com a exibição diária dos filmes premiados no cinema Ideal.

Sob o signo do cinema, com a “dobradinha” de filmes sobre a lendária crítica de cinema Pauline Kael (What She Said: The Art of Pauline Kael, Ideal, sábado 26 às 18h) e sobre o cineasta checo Milos Forman (Forman vs. Forman, Ideal, sábado 26 às 22h), completada pelo filme de Abel Ferrara sobre o projeccionista e exibidor Nick Nicolau (The Projectionist, Culturgest, domingo 27 às 16h) – todos na secção Heart Beat. Sob o signo da amizade, com o filme a seis mãos que Rita Azevedo Gomes, Pierre Léon e Jean-Louis Schefer fizeram a partir dos escritos deste último, Danses macabres, squelettes et autres fantaisies (secção Riscos, Culturgest, domingo 27 às 14h) – e com dois retratos de artistas feitos por amigos.

Dominique Auvray, montadora veterana que trabalhou com Claire Denis, Marguerite Duras, Valérie Massadian ou Pedro Costa, filma o documentarista chinês Wang Bing (por três vezes galardoado com o prémio máximo do Doc) em Wang Bing, tendre cinéaste du chaos chinois (secção Riscos, São Jorge, domingo 27 às 19h). E outro nome regular no Doc, Werner Herzog (de quem o festival mostrou este ano também a sua ficção Family Romance LLC), homenageia o escritor Bruce Chatwin em Nomad – In the Footsteps of Bruce Chatwin (secção Da Terra à Lua, São Jorge, domingo 27 às 21h30).

O filme de Dominique Auvray (que trabalhou também com Wang em Mrs. Fang, vencedor do Leopardo de Ouro em Locarno) deixa (feliz ou infelizmente) água na boca: levanta um pouco mais o véu sobre Wang Bing, figura discreta que desde sempre se “apagou” por trás do seu cinema-testemunho, e permite-lhe explicar, na primeira pessoa, o porquê da sua feroz independência produtiva e do seu interesse em registar vivências reais para memória futura. Mas, por outro lado, fica a sensação de uma obra “inacabada” ou “incompleta”. Tendre cinéaste du chaos chinois ignora grande parte da vasta produção do chinês para se concentrar quase exclusivamente no ciclo de obras que Wang dedicou aos gulags maoístas, através da sua única ficção, A Fossa (2010), e do projecto testemunho-testamento a longo prazo de Almas Mortas (2018). Assim, o que poderia ter sido um grandíssimo olhar sobre um dos cineastas mais radicais dos nossos tempos fica reduzido a uma espécie de extra para DVD, com apenas 60 minutos de duração; mas vale pelo discurso directo de Wang Bing sobre o porquê do seu cinema, ao ponto de o realizador se comover perante a câmara ao articular a necessidade de a China assumir o passado e de ter coragem de encarar a verdade.

Também Werner Herzog se comove perante a câmara ao recordar os últimos dias de Bruce Chatwin (1940-1989), o autor de Na Patagónia, escritor, viajante e contador de histórias com quem travou amizade no início da década de 1980, com quem criou uma relação de “almas gémeas” ou “irmãos de armas”. Conheceram-se na Austrália, quando o escritor preparava o seu livro sobre as tradições aborígenes, O Canto Nómada; o realizador adaptou O Vice-Rei de Ajudá como Cobra Verde (1987); antes de morrer, Chatwin pediu que Herzog lhe mostrasse o documentário sobre a tribo nómada Wodaabe que estava a terminar, e legou-lhe a sua mochila de cabedal com que tanto tinha viajado, totem que o autor de Aguirre transporta ainda hoje nas suas viagens. Como uma passagem de testemunho.

Sendo um filme de Werner Herzog, Nomad: In the Footsteps of Bruce Chatwin não é um documentário biográfico tradicional; antes uma invocação ardentemente pessoal de um amigo desaparecido, refazendo os caminhos percorridos pelo escritor e conversando com aqueles que o conheceram (e com o seu biógrafo Nicholas Shakespeare) para nos dar uma aproximação do encanto com que Chatwin via e escrevia o mundo, das histórias que ele urdia à volta de sítios e tradições. Como Herzog diz às tantas, “havia quem se queixasse que o Bruce inventava muito, mas ele não dizia meias verdades; o que ele fazia era dizer uma verdade e meia”. Herzog Nomad é Werner Herzog no seu melhor. 

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