Apenas existir

Em sua casa, à mesa, falava-se da banalidade da vida e nunca por nunca de “questões pessoais”. O pai dizia que “essas coisas” se tratavam com o travesseiro. Como achou piada à expressão, começou a falar com o dito e ele respondia-lhe.

Nasceu sem saber porquê. Nunca ninguém teve a decência de lhe perguntar se queria vir ao mundo. Talvez por isso nunca ou quase nunca o entendeu. Desde miúdo sentiu-se inadaptado, apontado a dedo, mas isso não o preocupava sobremaneira. Apenas achava estranho que a mãe chorasse cada vez que era chamada à escola.

Ficava a ler – a mais bela alquimia da vida – nos intervalos e nunca jogava à bola. Também ninguém o escolhia e a educação física era para ele um suplício. Lembrava-se da aula sempre que, ao domingo, com os pais em roupas polidas, ouvia um sermão de um homem cuja indumentária ia mudando de cor ao longo do ano e que falava de coisas estranhas, de uns tais “inferno” e “demónio”. Ele achava que o senhor se referia às aulas em que ninguém queria fazer equipa com ele. Mas, entretanto, olhava para o ser de braços estendidos, com olhar sofrido e coroa de espinhos e concluía que ele teria padecido mais.

Durante largo tempo habituou-se a confiar naquele crucifixo como se de uma demonstração viva se tratasse de que os seus problemas eram muito menores que os daquela criatura. Foi passando por uma fase de movimento estranho dentro do seu corpo, alterações fisionómicas, descobrindo que uma certa parte, afinal, tinha mais utilidades que aquela que ele conhecia. Isso divertiu-o e pensou que passaria a ser auto-suficiente.

Veio o ciclo e o secundário, encontrou pessoas que os outros também apelidavam de “estranhas” e com elas constituiu o que passou a entender ser uma “amizade”. Sofreu horrores na primeira aventura amorosa e jurava morrer quando as coisas deram para o torto. Mas não se queixava em frente de ninguém. Em sua casa, à mesa, falava-se da banalidade da vida e nunca por nunca de “questões pessoais”. O pai dizia que “essas coisas” se tratavam com o travesseiro.

Como achou piada à expressão, começou a falar com o dito e ele respondia-lhe, acabando por lhe oferecer soluções para as inquietações com que se deitava. Foi passando para a vida adulta como se de uma transição suave se tratasse, aquilo que mais tarde saberia designar-se como “justiça de transição”. Transitou da ditadura da adolescência para os alvores da democracia da vida adulta, embora secretamente desejasse não abandonar o ninho.

Voou primeiro para continuar os estudos fora da cidade natal e, mais tarde, quando ingressou no mundo do trabalho. Poderia ter conhecido o abismo como tantos colegas seus, mas algo o impelia a permanecer no recato do lar de estudantes, abrigado entre livros, escutando música que a maioria não apreciava e refugiando-se em sessões manhosas de cinema europeu e asiático onde chegava a estar sozinho na sala.

Não se importava com isso. Já tinha compreendido que a sua existência seria uma passagem de cetim pelo mundo, sem altos e baixos, sem correrias que não as indispensáveis para não ser despedido. Espantava-se com o desejo de ascensão de tantos que o rodeavam. Tudo o que desejava era ter tempo para ler à noite e para passar o fim-de-semana a existir. Simplesmente. Sem propósito. O que, para ele, era a coisa mais propositada do mundo.

Morreram os pais e nos funerais de ambos não conseguiu deixar de sentir o sabor da pequena vingança pela falta de demonstração de afectos com que os progenitores o brindaram. Nem sequer um irmão lhe deram. Quiseram-no todo para eles e, na verdade, ignoraram a sua existência, desde que funcionalmente tudo operasse. E assim era: estudou, trabalhava, não dava problemas, era educado e polido e falava com os pais sobre coisas banais. Ultrapassar essa barreira seria enfrentar o mundo tenebroso de sentimentos fechados em caixas de Pandora. E pai e mãe viviam atemorizados com a abertura de qualquer coração. Nunca se sabe o que de lá de dentro pode sair e o controlo da vida era regra castrense naquela casa que jamais foi lar. Por ironia do destino ambos morreram de doenças cardíacas e nas missas riu-se secretamente para o crucificado, pensando nos misteriosos caminhos daquele ser e na fina ironia que impunha aos seus súbditos.

No entardecer da vida deixou de poder ler, de reconhecer quem quer que fosse. Numa noite em que estava no hospital, teve uma epifania e desatou a escrever o seu epitáfio: “aqui jaz alguém a que deram a forma de pessoa, que trataram como objecto e que nunca conseguiu perceber o que veio cá fazer por nunca lho terem explicado”. O companheiro de quarto, ancião sabedor, leu o que tinha sido escrito e, imitando a letra, rapou de outra folha e escreveu: “aqui jaz um homem valente que, mesmo sem o saber, salvou a vida de muita gente”. No estertor da morte, a enfermeira de serviço viu o papel e o ancião disse-lhe que se tratava do último desejo do defunto ainda quente.

— O senhor conhecia-o? Parece que não tem família…

— Conheci-o muito bem. Ajudou-me toda a vida.

— Como?

— Porque existiu e descobriu que a maior dádiva da vida é desconhecer qualquer plano e simplesmente estar no mundo.

A enfermeira arregalou os olhos e recomendou ao médico que o velho ancião fosse visto por psiquiatria.

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