Lutas contra a desigualdade

Poderão dizer que há um oceano de distância entre Portugal e o Chile, mas este texto não é uma futilidade para a atual situação política portuguesa.

A atenção é sempre para a gota que faz transbordar o copo, eu sei. É habitual, mas ignora que o copo já estava cheio antes daquela gota cair. As lutas a que assistimos em Santiago do Chile mostram bem isso. Houve quem julgasse que o problema era apenas aquela última gota e atribuísse os protestos ao aumento do preço dos transportes públicos. Até mesmo o Presidente chileno Sebastian Piñera achou isso, pois julgou que travar esse aumento de preços acalmaria os protestos. Só que o copo já estava cheio das desigualdades no país e do pior da política neoliberal. Agora, o Chile é um país em convulsão social.

Primeiro, foram os estudantes que se levantaram contra as desigualdades. Logo depois, o rastilho dessa luta inflamou a cidade e o povo saiu à rua. Num país onde o ensino superior é uma das principais causas de endividamento dos jovens entre 15 e 29 anos, eles sabem o quão caro lhes saem as políticas que mantêm a autoria da ditadura de Pinochet.

A quase completa ausência de estado social é outra das faces de um brutal modelo social que mantém a larguíssima maioria do povo na pobreza. Hoje não existe qualquer serviço nacional de saúde digno desse nome e a falta de financiamento público atira sempre a fatura para o bolso individual, tornando ainda mais baixos os já miseráveis salários ou deixando muitas pessoas sem cuidados de saúde.

O mesmo princípio se aplica ao sistema de pensões chileno, que me merece uma enorme perplexidade. Construído nos escombros da ideia de uma solidariedade geracional, é baseado numa lógica completamente individualizada, exigindo a comparticipação apenas ao trabalhador e nenhuma responsabilidade à entidade patronal ou ao Estado, estando entregue à gestão de empresas privadas. O resultado é um legado de pobreza, em que o valor da reforma oscila entre 20% e 30% da média dos rendimentos.

Terá alguma surpresa se lhe disser que o mentor deste miserável sistema de pensões é o irmão do atual Presidente chileno? E que o próprio Sebastian Piñera é um dos homens mais ricos daquele país? Pois é, não há coincidências. O alvo das lutas é a enorme desigualdade do país e a elite que prospera enquanto a imensa massa do país desespera.

As palavras fortes não deixam dúvidas: “Estamos em guerra contra um inimigo poderoso e implacável.” Foi assim que Piñera justificou a chamada dos militares e é assim que ele se sente quando o povo sai à rua em luta contra as desigualdades, porque ele sabe que as pessoas são o seu inimigo e da elite que ele representa.

A apresentação que fiz da situação chilena não tem nenhuma originalidade, mas pode parecer estranha a quem tenha assistido às imagens da violência nas ruas, à declaração de estado de emergência, e até à indiferença popular face ao anúncio de um pacote de medidas sociais. Na maioria das vezes, a forma como essas imagens têm sido difundidas pertencem a uma narrativa internacional que desvaloriza a declaração de guerra de um Presidente ao seu povo e a chamada do exército para o combater nas ruas. Não é de estranhar, o neoliberalismo pode ter caído em desgraça, mas a elite que o promoveu não o crítica.

Ainda me lembro como a ditadura chilena era apresentada como um milagre económico e os Chicago Boys eram equiparados a estrelas pop. Até o sangue derramado era desvalorizado e atribuído apenas a uns excessos dos militares. Não por acaso, quando Pinochet estava em prisão domiciliária em Surrey, ainda recebia presentes de Thatcher e era apelidado de “velho amigo”. Há muitas culpas ainda por expiar...

Poderão dizer que há um oceano de distância entre Portugal e o Chile e que o neoliberalismo já lá vai para as páginas da história. No entanto, este texto não é uma futilidade para a atual situação política portuguesa. Quando dois partidos chegam ao Parlamento dizendo que querem o plafonamento da segurança social, o fim do serviço nacional de saúde, ou tomando como alvo a escola pública, é o Chile que vemos ao espelho. A verdadeira ameaça de Chega ou da Iniciativa Liberal é a promessa das desigualdades para o futuro do país. Mais do que discutir lugares ou futilidades, é esse o debate que se deve ter com eles.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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