Empresa apoia-se na Constituição para tentar fazer valer posse de terreno na Arrábida

Porto de Leixões ainda não reclamou titularidade de terreno onde está a ser construído um empreendimento, pela Arcada. Bloco de Esquerda desafia esta entidade pública e a Câmara do Porto a “matar” este processo urbanístico, seguindo a recomendação da Inspecção de Finanças.

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A obra, junto ao rio, em baixo, continua embargada, desde o final de Janeiro Goncalo Dias

A Arcada, promotora imobiliária que contesta o embargo do seu empreendimento na Rua do Ouro, junto à Ponte da Arrábida, considera que as conclusões da Inspecção-Geral de Finanças, dando conta de que parte da propriedade pertenceria ao domínio público do Estado, não fazem sentido, à luz da própria Constituição da República. Fonte desta empresa admitiu ao PÚBLICO que esta será uma linha de argumentação caso o Ministério Público ou a Administração do Porto do Douro e Leixões (APDL) venham a reclamar, em tribunal, a posse dessa parcela.

A Arcada não põe em questão que o projecto que viu ser aprovado pelo município para aquele local, em 2017, assente, em parte, num terreno que já foi do Porto de Leixões. A empresa alega ter feito uma aquisição da propriedade em boa-fé, e que nada tem que ver com os negócios anteriores, da década de 90, que levaram à formação daquela propriedade de quase um hectare. Negócios que, como o PÚBLICO explicou, em Janeiro, envolveram o registo, em nome de privados, de um terreno municipal, e a usucapião de uma outra parcela da APDL, que a documentação consultada pelo PÚBLICO, indicam ser do domínio público do Estado. Essa foi também a perspectiva da IGF, num relatório de Junho cujas conclusões o jornal divulgou nesta sexta-feira.

Sendo de domínio público, um terreno nunca poderia ser alvo de alienação por parte do Estado, e muito menos de um registo por usucapião por privados, como o que aconteceu neste caso. Mas a tese da empresa é que a área, que era conhecida como a antiga pedreira da Arrábida, explorada anos antes da construção, a dezenas de metros para nascente, da ponte homónima, de 1963, não poderia ser domínio público, porque a Constituição, quer a de 1933, quer o actual texto fundamental aprovado em 1976, desde a revisão de 1989, definem o que pode ser domínio público e dele excluem, na interpretação da empresa, as pedreiras.

Diz o artigo Artigo 84.º da Constituição, numa redacção não muito diferente da do Estado Novo, que “pertencem ao domínio público: a) As águas territoriais com seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos; b) As camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou superficiário; c) Os jazigos minerais, as nascentes de águas mineromedicinais, as cavidades naturais subterrâneas existentes no subsolo, com excepção das rochas, terras comuns e outros materiais habitualmente usados na construção (...)”. No texto de 1933, estes materiais – rochas e areias - são também “expressamente” retirados do que pode ser considerado domínio público.

Domínio público ou domínio privado?

A Arcada não tem dúvidas de que o texto se refere a pedreiras e não aos materiais delas retiráveis. E perante esta interpretação, considera que aquele terreno terá pertencido, no máximo, ao domínio privado do Estado, à guarda da antiga Junta Autónoma dos Portos do Douro e Leixões. E a ser assim, insistem, ele poderia sempre ser alvo de venda, ou de usucapião, como aconteceu em 1996, por via do registo efectuado na conservatória por Luísa Pena, que haveria de vender a propriedade ao primeiro promotor, a Imoloc.

Enquanto o actual promotor imobiliário vai fazendo o seu caminho, para tentar provar que é legítimo proprietário dos terrenos em causa - onde a obra se mantém parada, sob embargo, a pedido do Ministério Público, que invoca outras irregularidades no processo urbanístico – a APDL ainda não foi para Tribunal reclamar aquilo que, para a IGF, é, efectivamente, do domínio Público do Estado (DPE). Apesar de ter vários documentos e plantas em que a parcela é descrita como parte do DPE, a empresa, sucessora da antiga Junta Autónoma, considera que precisa de uma ficha cadastral. Pediu-a à Direcção-Geral do Tesouro e Finanças em Abril, três meses depois da notícia em que o PÚBLICO revelou a sucessão de negócios junto à ponte, e nove meses depois, ainda não a encontrou.

Esta sexta-feira, em resposta ao PÚBLICO, fonte da administração garantiu que a empresa tudo está a fazer para cumprir a lei e as recomendações da IGF, que instou o município (que também perdeu ali uma parcela, mas do seu domínio privado) e a APDL a irem para tribunal reclamar o que será de ambas as entidades públicas. A resposta ao ofício enviada ao Tesouro chegou a Leixões já em Julho, mas aquela entidade do Ministério das Finanças limitou-se a indicar um conjunto de arquivos onde a ficha poderia ser eventualmente encontrada, deixando à APDL a responsabilidade de mergulhar na documentação obtida junto da Torre do Tombo. Um trabalho que ainda está a ser feito pelo Porto de Leixões.

BE desafia Câmara a avançar 

Do ponto de vista político, e depois de ter visto o município manifestar dúvidas quanto às possibilidades de sucesso e quanto aos riscos, para o erário municipal, de uma tentativa de reclamação de terrenos perante o actual proprietário, o Bloco de Esquerda insistiu, esta sexta-feira, que compete à câmara e à APDL “matar de vez” o projecto urbanístico embargado. “A IGF conclui ser verdade aquilo que o Bloco de Esquerda vem denunciando há mais de um ano e que Rui Moreira sempre recusou: que os terrenos onde decorre a construção da Arcada na escarpa da Arrábida são públicos e foram apropriados indevidamente”, sublinha Pedro Lourenço, deputado municipal do BE e membro da Comissão de Inquérito à obra em causa, num comunicado enviado ao PÚBLICO.

Na resposta enviada à IGF, e a que o PÚBLICO teve acesso, o município não põe em causa nenhuma das conclusões sobre a titularidade dos terrenos, lembrando apenas que a parcela que de que a própria câmara abdicou, em favor da Imoloc, era do domínio privado da autarquia, ou seja, poderia, querendo esta, ser alienada. O município pediu um conjunto de esclarecimentos à entidade de auditoria do Estado, mas deixa claro ter muitas dúvidas sobre o sucesso de uma acção para tentar reaver algo que a câmara aceitou ceder (em 2001 e, depois, em 2009) mesmo quando tinha relatórios internos indicando que estava a negociar algo que já era seu. 

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