Trabalho: que estranheza do que é humano?

Do trabalho de cada um, seja em que profissão for, há dele sempre consequências (boas ou más) para os outros. Mais directas ou mais indirectas, mais imediatas ou mais diferidas.

"Nada do que é humano me é estranho”

Terêncio [1])

Foi recentemente divulgado o caso de um bebé que nasceu sem olhos, nariz e parte do crânio, depois de a mãe, numa clínica privada, ter realizado três ecografias que, segundo o obstetra que as executou, não apontavam qualquer problema. Corre agora no Ministério Público (MP) um inquérito desencadeado por queixa dos pais desse bebé nascido com malformações.

O médico obstetra em causa foi já objecto, por parte da Ordem dos Médicos (OM) de 10 processos disciplinares (quatro arquivados; cinco a decorrer, sendo o mais antigo de 2013 e os restantes de 2014, 2015, 2017 e 2019; mais um relacionado com o referido caso do bébé). Segundo o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia, Dr. Luís Graça, “há muitos médicos a fazer ecografias sem “competência”.

Vinda de quem vem, esta declaração deixa no ar a ideia de haver falhas de competência e, por implicação, deontológicas, no exercício de profissões da área da medicina. A propósito, sabe-se que, segundo dados da OM, em 2018, os conselhos disciplinares desta entidade abriram 1071 processos (incidentes não só neste domínio médico), sendo encerrados 957 casos, dos quais resultaram 45 condenações, com sanções de advertência (11), censura (21) e suspensão temporária (13), ainda que sem nenhuma expulsão da OM. A citação inicial deste texto veio-nos à ideia pelo conhecimento deste caso.

Contudo, este texto não visa este caso, em si. Não só porque se tem noção da insuficiência da inerente informação precisa, objectiva e sustentada que a análise do mesmo requer, mas, sobretudo, porque está a ser acompanhado pelas entidades competentes, MP e OM.

Pretende, sim, esboçar uma modesta reflexão de ordem mais geral sobre o exercício do trabalho de cada um (quer no enquadramento de organizações empregadoras ou utilizadoras desse trabalho, quer se realizado individualmente) do ponto de vista da ética e responsabilidades (social e não só) das organizações (empresas, administração pública e outras), bem como das responsabilidades (social e não só), da ética e da deontologia profissional de quem, concretamente, tal trabalho realiza.

E também não se tem por objectivo que tal reflexão se cinja à medicina (profissão de elevadíssimas exigências técnicas e responsabilidades de vária ordem, mas que não é a única, nem talvez a que nisso mais releva, até porque tal depende das respectivas circunstâncias e implicações) mas a toda e qualquer profissão, seja ela qual for e exercida em que actividade for.

Vendo bem, não há nenhuma profissão, mesmo nenhum trabalho, por mais individual e isoladamente que ele seja exercido, em que, directa ou indirectamente, imediata ou diferidamente, não nos relacionemos com os outros. No mínimo, pelas consequências humanas e sociais (e não só) de o que (o quê, para quê, como, com quê, com quem, quando, quanto...) fazemos ou deixamos de fazer. Sim, do trabalho de cada um, seja em que profissão for, há dele sempre consequências (boas ou más) para os outros. Mais directas ou mais indirectas, mais imediatas ou mais diferidas.”O trabalho tem um braço longo”.

Contrariamente ao que proclamou em 2005 a então primeira-ministra britânica Margaret Thatcher ("Não existe essa coisa de sociedade, apenas indivíduos...”) e, depois, os seus seguidores neoliberais, existe, existe sim senhor, sociedade. Sociedade em que nos relacionamos, entreajudamos, dependemos uns dos outros. Sociedade em que trabalhamos não só uns com os outros mas também, sempre, de algum modo, uns para os outros... Se já não bastasse a vivência do nosso quotidiano, muita, imensa, evidenciação disto pode ser feita.

Por outro prisma, ainda que relacionado com o essencial deste texto, é frequente atribuirmos as causas de erros ou falhas ocorridas no exercício de qualquer profissão, mais do que a falta de competência e ou deontologia profissional desta ou daquela pessoa que realiza o trabalho em que se consubstancia essa profissão, a condicionalismos de ordem organizacional a que essa pessoa está sujeita. Ou seja, à falta, insuficiência ou deficiência dos meios, organização, gestão, objectivos, estratégia da organização (empresa, administração pública, etc.) que, como entidade empregadora ou utilizadora do seu trabalho, enquadra esse profissional.
E, de facto, talvez até seja mesmo essa a regra, seja em que actividade for mas acentuadamente nalgumas. Inclusive, por exemplo, na medicina, mais em geral na área da Saúde, pelo que tanto ouvimos denunciar (reclamar) por parte dos profissionais de saúde (e até não só dos médicos) sobre as condições organizacionais e de trabalho em que, nas unidades de saúde, exercem a sua profissão.

Por exemplo, no domínio que tem a ver com a referida situação do bebé nascido com malformações, a obstetrícia, não se sabe até que ponto, ainda de forma indirecta, o recurso dos pais a uma clínica privada para o acompanhamento da gravidez foi, de algum modo, causado pela falta de profissionais desta área e respectivas dificuldades (des)organizacionais que, segundo um dirigente da OM, actualmente se verifica em muitas unidades do Serviço Nacional de Saúde.
Porém, ainda que sem prejuízo de se considerarem esses condicionalismos organizacionais, para além deles, voltando ao que já se assentou (em que, em qualquer profissão, do trabalho que realizamos há consequências para os outros, se não para a sociedade), a conclusão a tirar, baseada no respeitante quadro de responsabilidade(s) e de princípios éticos e deontológicos, é a de que um bom profissional não pode ser, digamos, um sacana.
O problema é que há indícios, no trabalho, de estarmos a resvalar para um outro quadro de “princípios” (interesses) organizacionais e profissionais que tendem a fazer degenerar essa conclusão para a de que para se ser um “bom” profissional é preciso ser um sacana. Um quadro de “princípios”, de interesses, em que “os seres humanos deixam de ser relevantes” (como escreve Paul Mason em Um Futuro Livre e Radioso – Uma defesa apaixonada da Humanidade), em que o Terêncio é “mandado às favas”, ripostando-se-lhe que, “cota”, ele está desactualizado, que agora tem que corrigir o seu pensamento para: “nada do que é rentável me é estranho”. É certo que a “aceitação“ ou “adesão” das pessoas, no exercício da sua profissão, a este novo quadro de “princípios” pode ser (leoninamente) forçado pela organização que as enquadra como entidade empregadora ou utilizadora desse trabalho.

E há muitas formas de, independentemente da profissão que se exercer e da actividade em que for exercida (se bem que se reconheça que, pelas suas características organizacionais e de outra ordem, há actividades onde tal é mais frequente), isto ser (como demasiadas vezes é) feito. Desde pela ameaça abrupta e boçal do “olho da rua” se não for “rentável” em função de tais “princípios”, até ao recurso a refinadas técnicas “de novos modelos de gestão” para tal orientados. Por exemplo, através da, muitas vezes perversamente utilizada, “avaliação individual de desempenho
Mesmo assim, do ponto de vista de responsabilidade(s), de ética e de deontologia profissional de cada um, é de perguntar até que ponto há uma adesão entusiasmada ou conformada a esse quadro de “princípios”, até que ponto ele lhe é inelutável, até que ponto o questiona, até que ponto o pode, minimamente, modificar (ou, pelo menos, tentar modificar).
De qualquer modo, quando a opção por a referência do exercício da profissão de cada um é, quanto a isso, exclusivamente individual e totalmente livre, estrita e absolutamente “por conta própria”, então, pelas consequências para os outros que podem resultar do exercício da profissão segundo tais “princípios”, justifica-se concluir que a esse profissional, no seu trabalho, muito, senão tudo, do que é humano lhe passou a ser estranho. A ser assim, tal suscita-lhe o risco (que é extensivo a quem, pessoa ou organização, por acção ou omissão, em tal for conivente) de, cedo ou tarde, ter que se haver, pelo menos, ... com o Terêncio.

Que, provavelmente, lhe perguntará: no trabalho, que estranheza do que é humano?

[1] Dramaturgo e poeta romano, Roma Antiga (195 a.C - 159 a.C.)

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