Independentismo catalão arde enquanto espera que a política aconteça

A dureza dos protestos na Catalunha abre um terreno desconhecido para o movimento de independência. Definição política em Madrid e Barcelona é a única chave para o desanuviamento.

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A maioria dos jovens detidos por distúrbios na Catalunha não pertence a associações independentistas EPA/EFE/Quique Garcia

A violência que marcou as manifestações na Catalunha na semana passada representa a entrada do processo independentista numa nova fase  com consequências difíceis de antecipar. As instâncias que tradicionalmente dirigam o movimento perderam o controlo das ruas e a sua retoma está dependente dos interlocutores políticos que emergirem nos próximos tempos.

As imagens de caixotes a arder nas avenidas de Barcelona são radicalmente diferentes do tom pacífico e educado que as manifestações multitudinárias pelo independentismo assumiam. Nas Diadas [dia nacional da Catalunha, a 11 de Setembro] dos últimos anos, por exemplo, milhares e milhares de pessoas saíam à rua sem que “um papel fosse posto no chão”, como lembravam alguns manifestantes por estes dias. Essas duas realidades conviveram durante as marchas da última sexta-feira, um dia que se revelou como o mais duro da mais recente onda de protesto, convocada como resposta às condenações dos nove dirigentes independentistas a duras penas de prisão.

A violência acabou por ser um subproduto de um divórcio entre o rumo institucionalista que o independentismo seguia até hoje e a postura radical que defende a linha do “quanto melhor, pior”. “O que vimos até agora era uma certa concertação e acordo entre os agentes políticos que impulsionavam o procés, que eram essencialmente os partidos da Esquerda Republicana (ERC) e os antigos Convergência e União, e a outra grande parte, confirmada pelas associações do tecido civil, sobretudo duas, a Òmnium Cultural e a ANC [Assembleia Nacional Catalã]”, diz ao PÚBLICO por telefone o professor de Ciência Política da Universidade Carlos III de Madrid Pablo Simón.

Os acontecimentos da semana passada confirmaram que “os independentistas perderam o controlo das ruas”, acrescenta o especialista. “Neste momento são os [Comités de Defesa da República] CDR, organizações descentralizadas, que comandam as dinâmicas de protesto e não obedecem a uma disciplina unificada”, diz Simón.

Para o director adjunto do diário catalão La Vanguardia, e observador atento da política regional e nacional, Enric Juliana, a subida da tensão estava integrada numa estratégia perseguida por um sector do independentismo, mas essa aposta acabou por revelar-se demasiado arriscada. “Uma parte do movimento independentista chegou à conclusão de que era preciso subir o tom. Mas penso que o seu propósito não era que isto derivasse em situações de violência, mas sim levar as coisas para um âmbito mais duro, de gerar momentos simbólicos de desobediência civil”, explica o jornalista contactado pelo PÚBLICO, dando como exemplo a ocupação do aeroporto de Barcelona.

Revolta contra o establishment

A evolução das manifestações da última semana de exercícios de cidadania pacíficos para confrontos abertos com a polícia seguiu um padrão que após alguns dias se tornou identificável. Ao fim de algumas horas, o acto era desconvocado pelos seus organizadores oficiais; porém, um grupo de algumas centenas, sobretudo jovens, encapuzados, trazendo consigo paus, pedras, cocktails Molotov e gasolina, desafiava a desmobilização e permanecia nas ruas – ou então dirigia-se para a Rua Laietana, onde está a sede da polícia e que passou a exercer uma espécie de atracção magnética no fim das manifestações.

Entre os detidos pelos distúrbios, uma esmagadora maioria não pertence a qualquer movimento independentista tradicional ou sequer a partidos. A imprensa identificava-os como “anarquistas” e correu até a notícia de que alguns não seriam sequer independentistas, tendo vindo de outras regiões de Espanha e do estrangeiro. Na televisão pública espanhola, um sociólogo de cabelo grisalho tentava interpretar esta juventude em revolta, dizendo que podiam até estar “a imitar o que viam em filmes”.

“Barcelona é uma cidade de conflitos sociais”, lembra Juliana. Na postura desta franja de manifestantes frente aos batalhões antimotim dos Mossos d’Esquadra, mais do que o independentismo estava patente um desafio à autoridade por uma geração criada em ambiente de crise permanente  económica, política e social.

Ao contrário do que acontecia até agora no movimento de massas do independentismo catalão, as reacções também se dirigiram contra os dirigentes catalães. “O que fica demonstrado é que o protesto é mais transversal, não é algo apenas dirigido contra umas elites [espanholas], é também contra as elites que lhes prometeram a independência e não cumpriram”, diz Pablo Simón.

Vários tabuleiros

Mais do que um braço-de-ferro, a crise na Catalunha é um xadrez jogado em várias dimensões e todas elas serão determinantes para saber até quando pode durar esta fase de maior tensão nas ruas. “A ruptura da unidade no campo independentista traduz-se em mais margem de manobra para os sectores mais radicais”, observa o politólogo.

No final da semana passada, o ciclo de violência crescente foi interrompido contra a maioria das expectativas pela iniciativa de um grupo de activistas que se concentrou pacificamente entre a polícia e os restantes manifestantes. Enric Juliana interpretou esta viragem como uma “reacção espontânea da sociedade catalã”.

“Numa sociedade, quando as coisas atingem um ponto perigoso, imediatamente se activam travões em vários planos”, explica, dando como exemplos os apelos dos partidos e associações independentistas, e até a acção das famílias. “Penso que em algumas famílias catalãs durante a semana passada houve gritos em casa”, afirma o jornalista.

O factor crucial para se perceber até onde pode ir a nova fase do independentismo não está nas ruas, mas sim nas urnas. As eleições legislativas de 10 de Novembro e os desenvolvimentos na política catalã serão decisivos. “Esta fase só irá terminar quando houver interlocutores claros tanto em Madrid como na Catalunha”, diz Simón. A paralisia dos actores políticos ficou patente na sequência de telefonemas deixados sem resposta entre o presidente do governo catalão, Quim Torra, e o chefe do Governo espanhol, Pedro Sánchez.

Os panoramas vigentes na política nacional e regional não permitem vislumbrar soluções óbvias. Se tudo aponta para que as eleições espanholas deixem tudo como está, na Catalunha tudo se joga numa disputa acesa entre as duas grandes famílias políticas do independentismo: a ERC e o Juntos pela Catalunha. As peças estão dispostas no tabuleiro.

“A linha de [ex-presidente catalão, Carles] Puigdemont é tentar impedir que os seus rivais da ERC cheguem à Generalitat, portanto vai tentar encurralá-los no cenário da desobediência civil. Os outros, pelo contrário, querem chegar à Generalitat para a partir daí, controlar o poder”, resume Pablo Simón.

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