“A mãe tem cancro?”

Não sei onde fui buscar este optimismo, mas a verdade é que encarei todo o processo da doença de cabeça erguida e com uma atitude vencedora. Não sei explicar como, apenas sentia que tinha que ficar boa para poder acompanhar os meus filhos durante muitos anos, e essa determinação motivava-me diariamente.

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Jude Beck/Unsplash

Tinha sido mãe pela terceira vez dois anos antes. Vivia uma sensação de felicidade plena, com a família completa e a perspectiva de ver os meus filhos crescer — dois rapazes, um de nove e outro de cinco anos, e agora uma menina com dois. Ainda mediante acompanhamento médico pós-parto, tinha feito exames médicos de rotina em Maio de 2015, que incluíram uma mamografia e ecografia mamária. Então, estava tudo bem.

Em Outubro do mesmo ano, lembro-me de estar deitada, à espera de adormecer, quando dei pela primeira vez por algo fora do normal. Surpreendi-me ao sentir um volume considerável por cima da mama direita, pelo qual nunca tinha dado antes, mas não pensei imediatamente no pior. Comecei por pensar que pudesse ser uma alteração relacionada com a menstruação que estaria para aparecer, mas como aquele alto volumoso persistia, ao fim de uma semana resolvi ir ao médico, dando início a um processo que duraria quase um ano.

Assim que fiz os primeiros exames — os mesmos que cinco meses antes tinham demonstrado que estava tudo bem — foi evidente na cara da médica qual seria o diagnóstico e acho que entrei desde logo num processo inconsciente de aceitação, como se o desfecho se tornasse mais evidente a cada passo. Não me lembro de sentir revolta ou desespero. Num primeiro momento sentia apenas uma imensa tristeza ao pensar nos meus filhos e no que seria o futuro deles.

Foi aliás neles que pensei quando, mais tarde, o oncologista me confirmou com exactidão o diagnóstico com base no resultado da biópsia. “Quando é que os meus filhos vão perceber?”, foi a primeira pergunta que fiz. Quando me caísse o cabelo, pois claro. Duas a três semanas depois de começar os tratamentos.

A invisibilidade da doença parecia-me, na altura, o último reduto de sanidade. Será que não passava tudo de um sonho? Durante mais de um mês, apenas eu e o meu marido soubemos o que estava a acontecer e optei por dar a notícia à família depois do Natal e do aniversário do meu filho do meio, dia de Reis. Entre mais exames e pequenas intervenções cirúrgicas preparatórias, o tempo foi passando meio a flutuar até à segunda semana de Janeiro, quando finalmente contei à minha irmã, aos meus pais, no meu trabalho e, por fim, ainda que de forma indirecta, aos meus filhos.

Fiquei de baixa médica uma semana antes de começar os tratamentos, por isso no primeiro dia em casa fui buscar o meu filho mais velho à escola. Estranhou ir buscá-lo, estava habituado a que saísse do escritório sempre tarde, mas não foi por isso que ficou menos contente por me ver. Expliquei que ia acontecer mais vezes, tinha uns tratamentos médicos para fazer e ia ficar por casa uns tempos. Perguntou-me se estava doente e atirou: “A mãe tem cancro?”. 9 anos. Explicou que tinha lido, sem querer, uma troca de mensagens entre mim e o pai, viu o nome de um dos exames que fiz e o Google devolveu-lhe que uma “cintigrafia óssea” era um exame que faziam pessoas que tinham cancro. Fez-me alguma perguntas, entre elas se eu ia morrer. “Claro que não!”, respondi sem hesitar, rejeitando daí para a frente qualquer hipótese de isso acontecer.

Não sei onde fui buscar este optimismo, mas a verdade é que encarei todo o processo da doença de cabeça erguida e com uma atitude vencedora. Não sei explicar como, apenas sentia que tinha que ficar boa para poder acompanhar os meus filhos durante muitos anos, e essa determinação motivava-me diariamente. Desde o primeiro minuto, não senti qualquer necessidade de procurar informação na Internet sobre o meu diagnóstico, foquei-me apenas nos médicos que escolhi para me seguirem e em quem confiava plenamente.

Fiz cinco meses de quimioterapia, felizmente sem grandes enjoos ou cansaço extremo, e tentei manter a vida o mais normal possível — nos dias em que não tinha tratamentos ia às compras, ia buscar os meus filhos à escola, fazia as refeições e ocupava-me com as tarefas normais de quem tem três filhos e não está a trabalhar. Não consegui dar à minha filha o colo que uma criança de dois anos ainda precisa, mas encontrei sempre outras formas de nutrir a nossa relação e, às vezes, deu-me ela o colo de que eu precisava.

Não quis usar cabeleira, por isso assumi um gorro no Inverno e um lenço mais tarde. Eu ia ficar boa, o cabelo ia crescer, por isso não havia porquê fingir. Já me bastavam as amarras da doença, não ia ficar refém de olhares alheios. “Cabeça erguida! Nunca deixes que te olhem de lado” foram as palavras sábias de um colega e que tomei como mantra naquela altura. Passar do meu registo discreto e low profile para um tal nível de exposição e vulnerabilidade, foi na verdade muito libertador e ensinou-me a relativizar a importância de um possível julgamento.

A quimioterapia teve um efeito redutor do tumor acima do esperado, o que permitiu que a cirurgia fosse apenas uma tumorectomia (retirei apenas o tumor e não a mama toda). Fiz também simetrização da mama esquerda e tive muita sorte com toda a parte de cirurgia plástica, pois fiquei apenas com cicatrizes muito pequenas e discretas no peito. Finalizei os tratamentos com um mês e meio de radioterapia e em Setembro, doze meses depois de tudo começar, fechava aquele que tinha tudo para ser o pior ano da minha vida.

E digo “tinha” porque, apesar das limitações, dos efeitos negativos dos tratamentos e da incógnita que o cancro é sempre, senti-me rodeada de amor como nunca e muito apoiada por todos, sem excepção. Desde a primeira hora, e ao longo de todo o processo, com total apoio do meu marido e meu companheiro de há mais de 20 anos. Os meus filhos, que me preencheram as horas e o coração com a forma de amor mais puro. A família, que tantas vezes assegurou a normalidade na vida dos meus filhos, os bons amigos que nunca me falharam, os colegas de trabalho, que foram inexcedíveis, ou os profissionais de saúde, que tornaram cada passo um pouco menos difícil. 

Hoje, quatro anos volvidos, mantenho alguns condicionantes a nível físico, consequência dos tratamentos que fiz e faço. Como passei por um esvaziamento axilar, não posso levantar pesos com o braço direito e perdi alguma força e sensibilidade nos dedos das mãos. Estou a fazer uma medicação mensal e outra diária, por um período de cinco anos, e sou acompanhada com consultas e exames regulares.

Contudo, escolhi não viver o meu dia-a-dia em função do que vivi, vivo ou poderei vir a viver. Posso dizer que tive muita sorte e levo hoje uma vida normal, na verdade só muito raramente me lembro da doença ou daquilo que verdadeiramente implica. Escolho viver o agora, porque é a única certeza que tenho, e valorizo muito mais cada momento. Sinto que me foi dada uma segunda oportunidade na vida e o que mais quero é saber aproveitá-la — afinal, tudo isto não pode ter sido em vão.

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