O meu primeiro voto

As minhas últimas eleições não terminaram muito bem e temia carregar esse azar até às urnas alheias. Fazia um belo dia de Sol sem vento em Lisboa, dia de apanhar o comboio para ir à praia, oportunidade que imagino rarear com a entrada do Outono.

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Nuno Ferreira Santos

Muitas eram as razões para eu não sair para votar no domingo, 6 de Outubro. É pretensioso, quase leviano, tomar uma decisão dessas num país onde se vive há menos de um mês. As minhas últimas eleições não terminaram muito bem e temia carregar esse azar até às urnas alheias. Fazia um belo dia de Sol sem vento em Lisboa, dia de apanhar o comboio para ir à praia, oportunidade que imagino rarear com a entrada do Outono. Ainda assim, fui votar. E não sei dar outra explicação que não esta: eu gosto de eleições.

A culpa, claro, é dos meus pais. A minha mãe carregou-me no colo no dia em que ela e tantos outros votavam pela primeira vez para a Presidência da República. Assinalou no papel o mesmo nome e o mesmo número que eu próprio, um dia, iria digitar na urna. Naquela eleição, perdemos. E perdemos todas as outras até ganharmos, 13 anos depois. A pequena cidade onde eu vivia pintou-se de vermelho e eu saí pela rua, dançando desengonçado, na batida do Olodum. Na tomada de posse de Lula da Silva, o meu pai chorava na sala, em silêncio, as lágrimas cobrindo o rosto inteiro, deitado no colo da minha mãe.

Sempre votei da mesma maneira. E apesar de poder enumerar motivos racionais para isto, como as 30 milhões de pessoas que saíram da pobreza, tenho consciência de que o meu voto carrega muito de uma opção emocional. E o que faria eu aqui, em Portugal? Comecei a ler jornais e a conversar com amigos portugueses para aprender novas siglas e novas regras, pedir sugestões. Entendi que a questão desta eleição era em “geringonça” se queria votar: PS, Bloco de Esquerda ou PCP? “Ah, e tu o que sabes, pá?”, diziam-me. Privilégio de um país que produziu noites tranquilas para o seu povo dormir.

Coisa rara para nós, na vitória ou na derrota. Na eleição de 2014, a minha ex-mulher estava a arranjar-se para votar, esculpindo com cremes, escovas e cuidados a sua bela cabeleira. Pôs um vestido de flor e um autocolante da Dilma. Na rua, foi “xingada” por um casal racista que gritava de dentro de um carro de luxo. O outro candidato ainda não era o fascista, mas já contava com muitos eleitores com este germe na cabeça. Naquela noite, nós ganhámos de novo. E fomos para a Lapa beber muito. E cantámos, sambámos e tirámos o sono dos vizinhos. Não sei se a gente já sabia que seria a nossa última vitória. E que nem sequer duraria quatro anos.

As derrotas iam além das eleições: golpes, crises e arrochos. Na véspera da prisão ilegítima do Lula, estava em casa com a minha namorada. Ligámos a televisão. Davam as notícias da prisão ilegítima. Ela começa a gritar pela casa, com todas as razões do mundo para isso: “O crime do Lula sou eu, o meu doutorado é o crime do Lula”. Foi o que nos salvou. Naquele dia, o grito roubou o espaço do choro.

Sobre a última eleição brasileira não consigo dizer nada, só que tudo ainda dói. E que eu cometi a burrice de assistir à apuração dos resultados sozinho em casa. Quando o resultado se confirmou, liguei para a minha namorada, para a minha mãe, para o meu pai, para a minha ex-mulher. Chorámos todos juntos. Do lado de fora, muita gente gritava, soltava fogos, dava tiros. Cantavam o hino sem parar, como se não soubessem nenhuma outra canção.

Carrego comigo cada uma dessas coisas quando saio no domingo para votar. Faço a minha escolha. A minha porção da “geringonça” tende para o Livre, o caçula da esquerda portuguesa. Seguindo uma tradição brasileira, voto mais na pessoa do que no partido. A pessoa no caso era Joacine Katar Moreira, historiadora e activista, que lutava para ser a primeira mulher negra do parlamento português. Conseguiu. Só não dá para dizer que será a primeira porque outras duas, Beatriz e Romualda, também venceram nessa eleição. Afinal, para que servem as noites de sono tranquilas se não for para produzir algum sonho?

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