Deixa a papa, Joana deixa a papa

Durante a infância, as crianças apresentam uma grande diversidade de padrões alimentares, sendo que, na maior parte dos casos, esta variedade não constitui um problema alimentar.

Foto
@petercalheiros

Desde bebé que a Joana (nome fictício) ingere maioritariamente líquidos. A mãe confecciona-lhe sopas nutricionalmente ricas, que incluem carne ou peixe, papas, fruta triturada ou batidos sem pedaços e prepara outra refeição para o resto da família. Quando a Joana é convidada a provar algum alimento novo, começa a chorar e permanece imóvel, com a boca bem fechada. Agora, a Joana está mais crescida e continua a comer pouco e de forma selectiva, o que causa grande transtorno aos pais.

O que aconteceu para a Joana não ter dado o salto esperado para a introdução normal de alimentos sólidos e diversificados?

Durante a infância, as crianças apresentam uma grande diversidade de padrões alimentares, sendo que, na maior parte dos casos, esta variedade não constitui um problema alimentar. Atenção, porque não estamos a falar das crianças com intolerância alimentar. No que respeita à idade pré-escolar, é comum encontrarmos quer crianças que comem tudo o que lhes aparece pela frente, quer outras que comem somente quatro ou cinco variedades de alimentos e rejeitam quase tudo o que os adultos lhes dão. A tendência é que este desinteresse pelos alimentos desapareça, dando lugar a uma alimentação equilibrada, mas isto não acontece com todas as crianças.

Quando estamos perante uma criança que rejeita de forma continuada a maior parte dos alimentos, não devemos olhar somente para a criança que não come tudo o que se lhe põem no prato, mas considerar os contextos de desenvolvimento emocional, social e nutricional da mesma e da sua família, que se influenciam de forma recíproca.

Na verdade, apesar de se poder identificar possíveis causas orgânicas para o início dos problemas alimentares, como, por exemplo, alergias e infecções, estas raramente explicam a persistência do problema, sendo que os factores ambientais, como a má gestão do comportamento da criança durante as refeições, não sendo únicos, desempenham igualmente um papel importante.

A alimentação na infância é fundamentalmente um processo relacional entre a criança, os seus cuidadores e o ambiente. Assim, a forma como os pais resolvem as recusas da criança em provar e em comer alimentos pode ser um factor que alimenta o problema, embora até possa não ter sido o que o tenha causado.

O foco da alimentação não deve ser fazer a criança comer seja de que jeito for. Isso destrói a relação com ela porque impõe pressão tanto no adulto como na criança e geralmente resulta em tácticas de alimentação negativas, baseadas em gritos, desespero e às vezes violência, que limitam a possibilidade de sucesso da criança e podem causar comportamentos alimentares negativos a longo prazo.

Em alternativa, o foco deve estar em criar uma relação positiva da criança com a alimentação e em ajudá-la a aprender comportamentos alimentares que a satisfaçam e façam bem à sua saúde.

Enquanto bebé, a exposição dos alimentos, a partir dos seis/sete meses, vai ser fundamental para a aceitação dos mesmos quando for mais velha. Assim, uma introdução tardia de novas texturas e sabores (que, algumas vezes, resulta da crença dos pais de que a criança não vai comer determinado alimento, porque não gosta de outro semelhante) pode resultar na recusa de novos alimentos. Um dado útil relacionado com esta afirmação é a existência de investigação científica que comprova que as crianças são mais receptivas a novos alimentos depois de pelo menos dez provas do mesmo. O problema é que nem sempre os pais são insistentes e, mal a criança rejeita o alimento, este é logo posto de parte. Assim, cria-se o “não gosto” e o “não vale a pena dar-lhe porque ela não vai comer”. Da recusa aos sólidos pode surgir o medo de engasgar porque, afinal, quem nunca trincou os alimentos durante o primeiro ano de vida não desenvolveu os movimentos da língua que são indispensáveis para a deglutição.

De regresso à história da Joana. Os seus pais tinham atitudes contrárias na forma como lidavam com as refeições da filha: o pai acreditava que a Joana deveria comer sem ser forçada e, por isso, era muito paciente e cedia a quase todos os seus pedidos, mas era mesmo quase todos, porque, às vezes, ficava irritado quando a filha não comia e dizia coisas más de se ouvir; enquanto a mãe desempenhava o papel de “má da fita”, exigindo que a Joana comesse, mas também não era sempre assim, já que na casa da avó tudo era diferente.

Parte daquilo que alimentava esta objecção da Joana em comer (e também em crescer) residia na falta de uma atitude conjunta e consistente por parte dos seus pais, e transformava as refeições em algo pensado e vivido como insuportável (embora os pais cedessem sempre ou intermitentemente), com impacto notório na relação do casal e deste com outros familiares, porque até certo ponto suportavam os palpites dos avós e dos tios, mas, num belo dia gerava confusão e a família deixava de ir a casa dos outros para não ter de os aturar...

Enfim, a Joana via o seu curso desenvolvimental comprometido porque não só tinha falhado na tarefa de transição dos alimentos líquidos para os sólidos, como via reduzida a sua autonomia, ou seja, não participava em festas de outras crianças e era bastante insegura, o que a deixava muito dependente dos pais. A persistência deste padrão parental, muito baseado na protecção, não permitia a evolução da família e acabava por manter as dificuldades tanto da Joana como dos pais.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários