A História é do homem e da mulher

Sempre me comportei como me apeteceu, sem pensar se é mais ou menos apropriado por ser mulher. Admito que nunca tive de fazer esse esforço. É provável que esta forma de estar tenha sido transmitida pelo ambiente familiar em que cresci. E por acreditar que machos e fêmeas humanos são o mesmíssimo bípede.

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Mag Rodrigues

Cresci numa casa com um numeroso elenco de adultos. A vantagem de partilhar os primeiros anos de vida num espaço familiar caótico foi ter tido a companhia diária dos meus primos — só rapazes! Não tenho memória de fazermos distinções de género nas brincadeiras. Dar banho aos póneis cor-de-rosa ou encarreirar betoneiras e camiões na carpete, fazia tudo parte do mesmo universo. Brincávamos, é isso. Até aos cinco anos cortava o cabelo no barbeiro porque gostava dele curto como os meus primos. Usava muitas vezes calções — ainda hoje é a minha peça de vestuário favorita — porque era mais prático e apropriado para as brincadeiras no exterior que envolviam números acrobáticos, por exemplo, trepar até ao topo das paragens de autocarro. Crescer com os meus primos não me fazia sentir mais ou menos rapariga. Foi, aliás, com um primo nove meses mais velho que aprendi a dar linguados; uma coisa técnica, bastante útil. Na infância, tudo tinha o mesmo valor. Praticar linguados, jogar à bola ou dar biberão ao bebé careca. A importância que dávamos às coisas era medida pelo interesse que tínhamos em determinado momento. Fui educada como criança e não como rapariga. Isso era irrelevante.

Só tive noção da importância que teve na criação do meu carácter quando li O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir. Acredito que a educação é a base para a destruição deste mito da diferença de géneros. Ultimamente, consigo perceber isso melhor ao ver o comportamento da minha filha. Frequenta o primeiro ciclo e não gosta de cor-de-rosa nem de princesas. Adora pintar as unhas e trepar às árvores, fazer surf e patinagem artística. Brinca com rapazes e raparigas, não faz distinção. Estou certa de que a educação que recebe em casa e na escola tem um papel fundamental na sua atitude. Vejo-a livre de preconceitos de género. Há dias numa livraria fiquei verdadeiramente orgulhosa com o que disse. Estávamos a folhear um exemplar e a livreira explicou-nos:

— É sobre a História do Homem ao longo dos tempos.

— Do homem e da mulher — acrescentou rapidamente a minha filha.

A livreira espantou-se com a prontidão na resposta.

— Sim, tens razão. Do homem e da mulher.

Depois, a livreira virou-se para mim e disse:

— Já reparou que esta resposta não seria possível quando éramos crianças? Nem nos ocorria tal coisa. O Homem incluía todos os seres humanos e pronto — concordei em absoluto e fiquei a pensar.

O problema é que a fêmea foi considerada durante muitos séculos por analogia ao macho. Como se o macho fosse o paradigma do ser humano e a fêmea a sua metade. Uma das coisas mais esclarecedoras n' O Segundo Sexo sobre o conceito macho/fêmea concentra-se precisamente na avaliação das diferenças comportamentais: “o homem é definido como ser humano e a mulher como fêmea: todas as vezes que ela se conduz como ser humano, afirma-se que ela imita o macho”. Sempre me comportei como me apeteceu, sem pensar se é mais ou menos apropriado por ser mulher. Admito que nunca tive de fazer esse esforço. É provável que esta forma de estar tenha sido transmitida pelo ambiente familiar em que cresci. E por acreditar que machos e fêmeas humanos são o mesmíssimo bípede.

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