Associação europeia condena declarações de Rui Moreira: criminalizar consumo é “um retrocesso”

Depois da Harm Reduction International e da CASO, também a Correlation - Rede Europeia de Redução de Riscos lamentou as recentes declarações do presidente da Câmara do Porto. “Repressão não funciona e viola significativamente os direitos humanos das pessoas que usam drogas”, defende

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Porto aprovou a craição de salas de consumo assistido, mas medida ainda não foi posta em prática Paulo Pimenta

A declaração é curta, mas incisiva. A Correlation – Rede Europeia de Redução de Riscos, da qual fazem parte 34 países e mais de 200 organizações, está surpreendida com as declarações do presidente da Câmara do Porto, nomeadamente com o seu manifesto desejo de reintroduzir “medidas criminais para consumo de droga em espaços públicos”. O texto - que será enviado para a autarquia - recorda a posição de Rui Moreira em Maio, quando abriu a conferência internacional da Harm Reduction International (HRI), e pede ao autarca que considere dar um passo atrás: “Condenamos abertamente a intenção do presidente da Câmara do Porto e pedimos que se comprometa novamente com seus esforços anteriores em apoiar uma política de justiça e de direitos humanos.”

Portugal, lê-se na declaração assinada pelos coordenadores da Correlation, Eberhard Schatz e Katrin Schiffer, é “visto como um país guia quando se trata de implementação de política de drogas e descriminalização do consumo”. E querer mudar esse paradigma é um “retrocesso”. Criminalizar, recordam entra em conflito com “evidências e experiências existentes noutros lugares que provam que a repressão não funciona e viola significativamente os direitos humanos das pessoas que usam drogas”.

Ao PÚBLICO, Eberhard Schatz, com largos anos de experiência na matéria, diz estar provado que a criminalização “causa ainda mais consequências negativas para a ordem pública e para a saúde e situação social dos consumidores”. Basta olhar para países como a “Rússia, Estados Unidos e alguns da Europa” para o comprovar: “As overdoses fatais, as grandes populações prisionais e o incómodo público são geralmente mais elevados nos países com uma política repressivas da droga”, afirma, falando ainda de uma “elevada prevalência de infecções por VIH” ou “desintegração social”.

Antes da Correlation, também a HRI, que há décadas se bate pela defesa dos direitos dos consumidores de drogas, havia tomado uma posição semelhante. Para aquela ONG, a intenção de Moreira representava “um significativo passo atrás na política de drogas de Portugal”. Em declarações ao Porto Canal, o presidente da autarquia desvalorizou essa tomada de posição, declarando estar mais preocupado com os portuenses e dizendo que a HRI estava ligada a George Soros, sugerindo uma instrumentalização desta ONG pelo investidor de origem húngara que nos últimos anos se tornou crítico do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán. Em Portugal, a Associação CASO escreveu uma carta aberta a Moreira, mostrando preocupação com o ambiente “tóxico” e “bélico” em torno do fenómeno da droga. A missiva já foi subscrita por 11 associações e 59 personalidades.

Em Maio, numa conferência no Porto, Moreira arrancou aplausos da plateia quando anunciou que o município ia apoiar a “criação de uma unidade móvel de consumo assistido como mais uma resposta de saúde pública”, algo que viria a ser aprovado, sem obstáculos políticos, em Junho. A análise do autarca não estava, na altura, longe daquela que é defendida pela Rede Europeia de Redução de Riscos. Rui Moreira mostrou-se “orgulhoso” por a droga já não ser um problema do Ministério da Justiça: “Há vinte anos mudou e agora tem a ver com o Ministério da Saúde. É uma mudança enorme”, congratulou-se.

José Queiroz, director executivo da APDES - Agência Piaget para o Desenvolvimento, não compreende como, passado poucos meses, o edil tem um “discurso completamente contrário”, defendendo aquilo que considera ser um “retrocesso civilizacional” e que põe em causa não só a “dignidade e segurança dos utilizadores” como aumenta o “medo, percepção de insegurança e provoca uma escalada de violência”.

O momento, diz José Queiróz, membro eleito do conselho directivo da Correlation, exige sobretudo a construção de “pontes” para chegar a soluções. “Não é preciso nenhum milagre para resolver este problema. Porque ele é o mesmo de sempre, talvez com um ou outro foco mais intenso”, disse ao PÚBLICO. A aposta primordial deve ser um “reforço das respostas de redução de riscos já existentes”, dando-lhes “mais meios humanos e financeiros”, e “avançar com as salas de consumo assistido”.

O diálogo, defende, deve ser privilegiado. Articulando moradores, consumidores, equipas de base comunitária, forças policiais e mesmo estruturas políticas. “É preciso sentar as pessoas à mesa, com periodicidade semanal, e encontrar caminhos.”

Após “pacificar o espaço público”, o “diálogo e bom-senso” serão mais produtivos, acredita, defendendo que “não faz sentido diabolizar ninguém”. Neste momento, defende, a sensatez deve imperar: “O que todos dispensamos são palavras promotoras de medo e insegurança.”

“Porto, cidade sem Sida”?

Na passada sexta-feira, Rui Moreira reuniu-se com o investigador Henrique Barros e presidente da IAPAC - Associação Internacional de Prestadores de Cuidados no VIH, José Zuniga para debater como está a cidade a implementar o projecto “Porto, Cidade sem Sida”, anunciado pela autarquia em Maio. Com 22 instituições, e coordenação científica de Henrique Barros, este projecto fixou como meta que, até 2020, 90% dos infectados tenham acesso a tratamento.

As cidades subscritoras da Declaração de Paris, onde o Porto se inclui, “propõe-se reduzir o estigma, atingindo a discriminação zero através do cumprimento das metas 90-90-90 por volta de 2020”, explicou na altura o presidente da autarquia. Tal significa que “90% das pessoas que vivem com a infecção sabem que estão infectadas, 90% das pessoas que sabem que estão infectadas estejam em tratamento e 90% das pessoas que estão em tratamento tenham a infecção controlada”. O PÚBLICO questionou a Câmara do Porto sobre os resultados até agora alcançados e a compatibilidade da criminalização do consumo em espaços públicos com a redução do estigma e discriminação, mas a autarquia limitou-se a informar que o projecto está em “fase de execução” e os primeiros resultados serão divulgados um ano depois.

A autarquia estará também a preparar um outro projecto chamado “Porto, cidade livre de drogas”, como recentemente divulgou num evento público o vereador Fernando Paulo. O PÚBLICO tentou saber mais sobre os objectivos deste plano, mas a autarquia não adiantou mais pormenores.

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