O orçamento participativo não mudou o mundo. Mas teve sucesso

Portugal é o segundo país europeu com mais orçamentos participativos. O segredo? É um dos nove países do mundo onde esta ferramenta é obrigatória.

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Em Portugal, o primeiro orçamento participativo foi criado em 2002 Daniel Rocha

Nascidos nos anos 80, os orçamentos participativos (OP) apresentaram-se como processos democráticos universais em que cabiam diferentes áreas de governação. Consigo traziam a promessa de serem a alternativa necessária para as transformações sociais e políticas exigidas: combater a corrupção, eliminar a desigualdade social e a inversão das lógicas de poder. Além disso, propunham erguer uma ponte de confiança entre as instituições e a população que — com os orçamentos participativos — se sentia ouvida. Nestes 30 anos, a ambição transformadora foi-se perdendo. Mas a metamorfose não foi necessariamente negativa, avalia Nélson Dias, consultor do Banco Mundial para a execução dos orçamentos participativos e co-autor do do livro Atlas Mundial dos Orçamentos Participativos.

Estima-se que existam entre 11.690 a 11.825 orçamentos participativos em 71 países. Apesar do seu crescimento, os OP continuam a ter uma disseminação muito assimétrica, não só em termos territoriais, como também nos seus propósitos. É na Europa que se concentram 39% dos OP de todo o mundo (entre 4577 e 4676).

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A adaptação do propósito dos orçamentos participativos impulsionou a expansão destes instrumentos democráticos para todos os regimes e quadrantes políticos — incluindo regimes totalitários. A aplicação destes processos “permite criar uma sensação de paz social e de participação”, diz Nélson Dias. Uma espécie de “defesa de boas intenções e diálogo por parte das elites, promovendo uma imagem de abertura sem nunca recorrer à palavra democracia”, lê-se no livro. Não obstante, isso não significa que não se possam retirar “benefícios políticos e sociais”. “Um OP num regime totalitário africano não tem as mesmas características que um OP num regime democrático europeu, nem tão-pouco se propõe a resolver as mesmas questões”, acrescenta o co-autor.

Se na Europa e na Oceânia os OP são maioritariamente instrumentos “de aprofundamento da democracia, promoção da participação e de construção da confiança entre a população e instituições”, nos países africanos os OP são usados como “reforço da transparência”, distingue o livro.

Na América do Norte, por exemplo, onde a criação de OP tem tido “um crescimento lento e moderado” — apenas 178, 1,5% do total mundial —, esta consulta pública é usada para “promover a igualdade e inclusão e reforçar o poder dos cidadãos”.

De Palmela para o país

Dentro do território europeu, é a Polónia o país com mais orçamentos. Mas Portugal também tem um lugar de destaque, sendo o segundo país europeu com mais OP registados no último ano: 1686. Para consultar o primeiro OP português é necessário recuar até 2002, quando no município de Palmela se elaborou um processo pioneiro no país que visava ouvir a opinião da população. Durante os primeiros dez anos, estas ferramentas visavam apenas conhecer a opinião dos habitantes. Mas, em 2012, o número de orçamentos deliberativos ultrapassou os consultivos — o que aproximou a população destes processos, devolvendo confiança às instituições. “Votar num OP não é passar um cheque em branco. E as pessoas sabem disso. Estão a votar num projecto, não apenas numa cara. É essa confiança que explica o sucesso”, sublinha Nélson Dias.

Em Portugal, a explicação para a explosão desta ferramenta reside na existência de três OP de âmbito nacional criados em 2017 pelo Governo: o OP Portugal, o OP Jovem Portugal e o OP das Escolas. O último é da iniciativa do Ministério da Educação e é obrigatório para todas as escolas públicas do 3.º ciclo e do ensino secundário. Esta obrigatoriedade põe Portugal na breve lista de nove países com uma legislação nacional sobre OP.

Além de Portugal, também o Peru, Indonésia, República Dominicana, Polónia, Panamá, Equador, Angola e Coreia do Sul têm legislação que prevê a criação e desenvolvimento destes processos. Só estes nove países concentram 58% do total mundial de OP. “A obrigatoriedade imposta pelas legislações criadas foi o elemento que maior influência teve na expansão de OP”, avalia Nélson Dias. Sem estas imposições, o número de OP desceria para cerca de 5 mil.

A ausência desta ferramenta, por outro lado, não deve ser encarada como um insucesso. “Nos países onde a qualidade de vida é estável e onde as instituições têm níveis de confiança altos, os OP não são vistos como instrumentos pertinentes.”

Da ambição transformadora com que surgiu no final dos anos 80 no Brasil o OP perdeu em ambição para ganhar projecção. “Não poderia ser de outra forma para que o OP pudesse alcançar tamanha projecção e aceitação em todos os quadrantes políticos. “Nenhum outro instrumento, de que haja memória, teve esta capacidade de se moldar a contextos tão diversos, alguns dos quais representando a própria negação dos ideais dos OP. E isso é um sucesso sem precedentes”, conclui.

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