Festival vai mostrar o teatro que foi e o que ainda vai ser censurado na era Bolsonaro

Nos últimos meses, sucedem-se os cancelamentos e os cortes orçamentais no teatro, mas também no cinema e na televisão. O Verão Sem Censura é uma reacção da Prefeitura de São Paulo à “criminalização do artista”.

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O espectáculo Res Publica 2023 foi vetado pelo director do Centro de Artes Cénicas da Fundação Nacional de Artes DR

A programação do Festival Verão Sem Censura vai construir-se publicamente, e talvez da pior forma: o evento visa mostrar no início de 2020 (o Verão brasileiro) peças de teatro que tenham já sido censuradas ou que venham a sê-lo no Brasil de Jair Bolsonaro. A iniciativa é da Prefeitura de São Paulo, e o seu secretário da Cultura descreve-a como uma reacção à “criminalização do artista” e um acto de “resistência”. No teatro, no cinema ou na televisão, vários títulos com temas políticos ou LGBT têm sido cancelados ou ficado sem financiamento nos últimos meses.

Alê Youssef, ex-programador cultural e um dos nomes mais progressistas da administração municipal paulista, disse ao jornal Folha de São Paulo que o festival é uma forma de “resistência (...) que luta pelo valor mais importante da cultura, que é a liberdade de expressão”. Ainda assim, contemporizou: “Vamos fazer isso não como uma medida de antagonismo ao governo federal, mas de valorização da nossa cultura.”

A organização do festival, ainda sem datas, surge numa altura em que se têm sucedido casos de cancelamentos de projectos por instituições públicas, ou declarações muito directas do próprio Presidente sobre títulos que lhe desagradam e que não quer ver financiados.

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Abrazo Rafael Telles/DR

Um dos espectáculos do festival será Abrazo, noticiam os diários Folha de São Paulo e El País (na sua edição brasileira), uma peça do grupo Clowns de Shakespeare para o público juvenil sobre repressão, exílio e a proibição de demonstrar afecto que em Setembro ficou sem autorização da Caixa Cultural do Recife cinco minutos antes de subir a cortina para a sua segunda récita. A companhia foi acusada de criticar os seus patrocinadores num debate após a estreia.

As caixas culturais são geridas pela Caixa Económica Federal, o organismo público que gere o financiamento deste sector e que é agora dirigido, assinalava em Setembro o El País, por Pedro Guimarães, membro da equipa de Jair Bolsonaro desde o início.

O encenador do espectáculo, Fernando Yanamoto, falou ao El País do “momento financeiro muito difícil” que o grupo vive devido ao cancelamento do projecto. “Era nossa principal fonte de receita.” Consideram que o Festival Verão Sem Censura é uma oportunidade de reunir “com outros e compartilhar esta experiência”.

Outro dos casos de censura é o de Res Publica 2023, uma peça do Colectivo Motosserra Perfumada que retrata o Brasil de 2023, um país fascista que fomenta o ódio a minorias, como descreve o diário brasileiro O Globo. A presença do espectáculo na programação do Centro de Artes Cénicas da Fundação Nacional de Artes (Funarte, uma fundação governamental) foi vetada pelo seu director, Roberto Alvim. “A peça não foi aprovada porque me pareceu que não havia nela alusão estética, apenas um discurso político. Não tinha nada a não ser um discurso panfletário. Isso não se chama censura e sim curadoria”, disse Alvim ao Globo.

O caso motivou polémica dentro da estrutura da Funarte, com a demissão da coordenadora Maria Ester Moreira, que em Agosto se opôs ao veto de Alvim, e um inquérito. Dias mais tarde, e após uma notícia da revista Veja, Roberto Alvim assumia a sua vontade de programar um importante teatro federal em Campo Grande para “o público cristão”, garantindo porém não ter intenção de fazer o mesmo noutros espaços tutelados pela fundação. No dia 11, a peça Res Publica 2023 estreou-se no Centro Cultural São Paulo a convite da Prefeitura da cidade, assinala o diário paulista Folha de São Paulo.

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Gritos Renato Mangolin/DR

Nos últimos meses, outros espectáculos viram as suas carreiras comprometidas em circunstâncias semelhantes. A companhia Dos à Deux candidatou-se a uma apresentação na Caixa Cultural de Brasília com dois espectáculos. Um deles, Gritos, que inclui uma personagem travesti numa cena de nudez, foi alvo de pedidos específicos de informação por parte da instituição, que acabaria por sugerir a sua substituição por outra peça. Acabaria por ser cancelada.

No início de Outubro, também o grupo Aquela Cia de Teatro foi informado de que o seu premiado espectáculo Caranguejo Overdrive, criado em 2015 e apresentado em Portugal em 2018, no âmbito do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, não poderia afinal subir ao palco do Centro Cultural Banco do Brasil (um dos cinco bancos estatais do país) no Rio de Janeiro. Cancelada sem justificação, fazia parte de uma programação especial de aniversário do centro cultural. “O texto traz uma contestação política, mas não é nada direcionado. Em cinco anos nunca passámos por esse tipo de problema”, dizia ao diário O Globo um dos fundadores da companhia, Pedro Kosovski.

“Foi uma censura ao vivo”

A presidência de Jair Bolsonaro reduziu o Ministério da Cultura a uma secretaria de Estado, o que fez encolher o seu orçamento e por conseguinte os apoios públicos à criação, e colocou a Cultura sob a alçada do Ministério da Cidadania. A Folha de São Paulo noticiou recentemente que, em vários contextos, autores e artistas estão a ser avaliados pelas suas posições políticas ou pelas opiniões que exprimem nas redes sociais quando se trata de tomar decisões de programação sobre a sua presença, ou a das suas obras, na rede nacional de centros culturais.

Quando se referem a temas como a igualdade de género, o racismo ou as questões LGBT, governantes como o ministro da Educação brasileiro ripostam com a vontade e eliminar das instituições públicas o “marxismo cultural” – “Para não esclarecer onde se quer chegar, qual a visão de cultura, disputa de valores e ideias, a fim de não ter que justificar nada disso, cria-se um espantalho, um inimigo simbólico”, explicava em Abril a investigadora de Ciência Política Daniela Mussi ao jornal Estadão.

Noutros sectores da cultura, as barreiras ideológicas à criação são assumidas por Bolsonaro em vídeos risonhos no Facebook. “Fomos garimpar na Ancine [Agência Nacional de Cinema, o regulador do sector] filmes que estavam prontos para captar recursos no mercado. Um filme se chama Transversais. Olha o tema: sonhos e realizações de cinco pessoas transgénero que vivem no Ceará”, exemplificava o Presidente do Brasil a 15 de Agosto num vídeo em directo em que se ria da candidatura do título à adaptação televisiva em cinco episódos para exibição na televisão pública. “Conseguimos abortar esta missão”, congratulava-se em Agosto.

“Não persigo ninguém, que cada um faça com seu corpo o que quiser para ser feliz, mas gastar dinheiro público nesses filmes... Não têm audiência, não têm plateia”, garantia, referindo-se à decisão de cancelar o financiamento a esse pacote de 80 projectos, incluindo filmes e séries, no valor de 70 milhões de reais. O cancelamento desse concurso foi contestado em tribunal e, segundo a edição brasileira do El País, o financiamento foi reactivado.

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Afronte DR

Outra dos produtos audiovisuais apontados a dedo por Bolsonaro foi Afronte, um projecto de mini-série sobre jovens negros e gays da autoria de Bruno Victor e Marcus Mesquita. “Mais um filme aí que foi para o saco”, congratulava-se o chefe de Estado. “Não tem cabimento fazer um filme com esse enredo né?”. Em Setembro, em declarações à edição brasileira do diário El País, Bruno Victor foi taxativo: “Foi uma censura ao vivo.”

No audiovisual, outros casos têm surgido. Depois de a exibição do documentário Chico: um artista brasileiro num festival de cinema uruguaio ter estado em risco, sob pressão da embaixada brasileira (Chico Buarque é crítico de Bolsonaro e apoiante do Partido dos Trabalhadores e em particular de Lula da Silva), também Marighella, de Wagner Moura, sobre um guerrilheiro comunista que se tornou símbolo da luta contra a ditadura no Brasil,  não vai estrear-se no seu país. Após a estreia mundial no Festival de Berlim em Fevereiro deste ano, o filme foi vendo a sua estreia comercial adiada até que, agora, foi mesmo cancelada. Estava agendada para 20 de Novembro, mas a Ancine, que responde ao Ministério da Cidadania desde que a tutela da Cultura foi extinta, rejeitou o apoio à sua distribuição. Em Portugal, o filme será exibido em sessão especial no 13.º Lisbon & Sintra Film Festival (LEFFEST), de cujo júri Wagner Moura fará parte.

Mas a Ancine poderá ainda enfrentar maiores dificuldades no futuro. A proposta do governo brasileiro é encolher o seu orçamento de 2020 quase para metade – prevê-se um corte de 43% do Fundo Sectorial do Audiovisual, principal fonte de financiamento da produção de cinema e de televisão do Brasil, e um recuo para 415 milhões de reais (90 milhões de euros). Bolsonaro defende também, apresentando a questão em tom de brincadeira, que a Ancine seja dirigida por alguém “terrivelmente evangélico”.

Em declarações à Folha, Marcelo Calero, ex-ministro da Cultura, considera o corte “pouco inteligente”, porque a indústria gera receitas fiscais e negócio. E postula que estas “são medidas que têm uma componente ideológica muito forte”, fazendo parte de um “processo atrasado e obscuro”, “um grande processo autoritário”. 

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